Hugo Albuquerque escreveu, ontem, um post com o mesmo título, e que está rendendo uma boa discussão. Não teria muito a acrescentar, mas a última declaração do Gabeira foi tão absurda que não posso me manter calado.

O que é preciso ressaltar é que a comparação entre o aparelhamento do estado pelo PT e a limpeza étnica não é só exagerada e descabida porque o governo Lula não promove genocídios nem metafóricos, mas porque ela banaliza o próprio termo de comparação. A chacina étnica se torna mais suave quando comparada ao apoio lulista a José Sarney. Transcriando o velho Heráclito, todo texto é sempre, também, contexto e hipertexto (leitura do contexto) e não há como não ver o cenário histórico de "esquizofrenia coletiva", para usar o termo do Hugo, em que a afirmação de Gabeira se inscreve: a equiparação do stalinismo ao nazismo, a suavização de Mussolini, as reformas ortográficas latino-americanas que abrandam a ditadura e inventam a "intra-dictadura". Os vocábulos vão perdendo, assim, a sua determinação referencial (a linguagem se modifica historicamente) e, nesta indeterminação, nesta ausência de mundo (de linguagem, de referência) compartilhado, a política (que "não passa" da nomeação aglutinadora de reivindicações, como diria Laclau) perde seu chão. E abrem-se as alas para a despolitização, para a substituição da política pela "moral", para o Gabeirismo

Em tempo: pelas razões acima é que tenho algumas restrições quanto a cunhar o projeto do Azeredo de "AI-5 Digital". É evidente que não nego seu caráter altamente autoritário como instrumento de controle absurdo e desmedido, mas acho que nomeá-lo assim enfraquece tanto a percepção histórica do AI-5 quanto a crítica ao projeto.

P.S.: Vale a pena ler, também a Carta-aberta de Maurício Caleiro a Gabeira, escrita em março deste ano.


(Fiquei sabendo, via NPTO, que Jürgen Habermas acaba de completar 80 anos. Tenho uma série de restrições quanto a "teoria da ação comunicativa", e explicito algumas delas no texto abaixo, integrante do meu work-in-progress sobre a censura, que fica, também, como uma singela homenagem ao "herdeiro" da Escola de Frankfurt).

No final de seu ensaio sobre Walter Benjamin, Crítica conscientizante ou salvadora: a atualidade de Walter Benjamin, Jürgen Habermas argumenta que "uma teoria da comunicação lingüística que reintroduza as intuições de Benjamin numa teoria materialista da evolução social deve pensar" a seguinte passagem de Para uma crítica da violência: "existe uma esfera de entendimento humano, não-violenta a tal ponto que seja totalmente inacessível à violência: a esfera propriamente dita do 'entendimento', a linguagem". Todavia, Habermas omite as frases de Benjamin imediatamente anteriores a essa, que não passa de uma conclusão tirada a partir daquelas: na "conversa (...) um acordo não-violento não apenas é possível, mas a eliminação por princípio da violência pode ser explicitamente comprovada com um tipo de relação importante: a impunidade da mentira. Talvez não exista no mundo nenhuma legislação que originalmente puna a mentira". A depuração racionalizadora do insight benjaminiano se baseia na reconstrução histórica que Habermas faz da emergência da "publicidade" (ou esfera pública) burguesa, na qual exercem um papel essencial tanto a noção benjaminiana de "aura", quanto a concepção arendtiana da "esfera social".

Algo como uma esfera pública feudal, argumenta em Mudança estrutural da esfera pública, só pode ser entendida como uma exibição pública do status e da hierarquia, uma demonstração da soberania - o que Giorgio Agamben irá chamar, mais recentemente, de "Glória", incluindo nela, porém, o próprio consenso visado pelo teórico alemão. Haveria representação e publicidade, mas não "no sentido de alguém ser representante da nação ou de determinados mandantes" e sim ligada "à existência concreta do senhor e que confere uma 'aura' a sua autoridade": "Enquanto o príncipe e seus terra-tenentes 'são' o país, ao invés de simplesmente colocar-se em lugar dele, eles só podem representar num sentido específico: eles representam a sua dominação, ao invés de o fazer pelo povo, fazem-no perante o povo". Habermas associa esta "representatividade" feudal ao que chama de "atributos da pessoa", como "a insígnia (emblemas, armas), hábito (vestimenta, penteado), gesto (forma de saudar, comportamentos) e retórica (forma de falar, o discurso estilizado em geral), em suma: um rígido código de comportamento nobre", e, para tanto, ampara-se na distinção de Carl Schmitt entre "estilo representativo" e a discussão e o raciocínio: aquele prescindiria destes, típicos de uma publicidade burguesa que só apareceria depois; sua racionalidade viria da fala que se "enuncia conforme a si mesma", fala esta "não-discutidora e não-argumentativa", e que torna "visível" "uma dignidade humana", pressupondo para isso "uma hierarquia, pois a ressonância espiritual da grande retórica provém da crença na representação reivindicada pelo orador". Ou seja, a publicidade medieval se basearia na pura exibição de significantes privilegiados cujos significados não podem ser discutidos, ou mesmo enunciados: é o próprio e simples uso destes significantes, a cujo acesso existe um controle, do poder que expõe o seu significado contextual, isto é, nada mais que o status de seus portadores. Tal representação não comunica nada, ou melhor, é a sua não-comunicabilidade que comunica: uma racionalidade baseada na crença - em outras palavras, uma ficção.

A "aura" e a "autenticidade" que tais selos exibem derivam do fato de que estes acompanham seus portadores em todo lugar, confundem-se com eles, não só exibem, mas são a sua originalidade, conferindo-lhes aquilo que Walter Benjamin chamou, no seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da arte, de "valor de culto": os nobres são orientados, continua Habermas, pelo "código de compoortamento cavalheiresco (...) não só em locais bem definidios, talvez 'em' uma esfera pública, mas a qualquer lugar, onde eles representam o papel de seus direitos senhoriais". A publicidade medieval é a própria aura.

Este estado de coisas - este estado da arte - se alteraria justamente com a entrada em cena do que Hannah Arendt chamou de "sociedade" ou "esfera social", a saber, a administração pública de assuntos privados, e que, para ela, impediria o florescimento de uma autêntica esfera pública. Habermas, por sua vez, na medida em que não entende o "dizer" do mesmo modo que Arendt (para ela, a função política da linguagem independe da produção de efeitos: "É verdade que o homem não pode proteger-se contra os golpes do destino, contra os golpes dos deuses, mas pode opor-se a eles e retrucar-lhes no falar e, se bem que esse retrucar não adianta nada, não mude a infelicidade nem atraia a felicidade, essas palavras pertencem ao acontecer como tal"), vê nesta guinada histórica promovida pelo mercantilismo justamente um dos fatores que implica na emergência da esfera pública moderna. Não só a base econômica do feudalismo começa a ruir, como também o constante intercâmbio de informações que se torna imprescindível com as atividades crescentes dos mercados e a formação de burocracias estatais e de exércitos permanentes, essenciais às disputas comerciais, abrem espaço para o que ele chamará de "publicidade" burguesa.

Porém, a esfera pública burguesa nasceria como esfera literária, antes de se tornar política - ainda que "esfera literária" aqui tenha sentido amplo, na medida em que é anterior à disciplinarização do saber, indicando, assim, um espaço de discussão, apresentação e exegese de textos e obras em que vige o argumento racional e não o status, espaço este brotado dos "cafés, dos salões, das comunidades de comensais", e posteriormente "mantido reunido através da instância mediadora da imprensa e sua crítica profissional". O conhecimento público - a publicidade burguesa - funcionaria como arma contra o segredo que fundamenta o saber hierárquico, baseando-se, para tanto, na idéia de igualdade entre os homens, ou melhor, como um debate público entre pessoas privadas, onde as diferenças ficariam de fora. Mas, tal esfera só se tornou possível com a mercantilização dos bens culturais: "como mercadorias, tornam-se, em princípio, acessíveis a todos", o que acarreta "o não fechamento do público": "todos (...) podiam, através do mercado, apropriar-se dos objetos em discussão. As questões discutíveis tornam-se gerais". É, portanto, a mudança provocada pelo capitalismo no estatuto da arte, que passa de insígnia do poder com valor imanente a objeto que extrai seu valor das cotações no mercados dos bens e das idéias, que permite que algo como uma esfera pública brote: "A arte, liberada de suas funções de representação social, torna-se objeto da livre escolha e de tendências oscilantes. O 'gosto', pelo qual, a partir de então, se orienta, expressa-se no julgamento de leigos sem competência especial, pois no público qualquer um pode reivindicar competência". A referência ao "gosto" é fundamental na argumentação habermasiana, como demonstra a citação que faz da passagem em que Gadamer trabalha "o ideário educacional de Gracian". Assim, a teoria da ação comunicativa não só indetificaria o "gosto" como saber constitutivo de uma esfera pública literária, que, por sua vez, criaria o ambiente (formaria um público) para uma esfera pública política, como o situaria também como parâmetro desta, na medida em que o gosto constituiria um saber sem verdade, a não ser o consenso de julgamento obtido pelo argumento mais racional - trata-se de tentativa análoga à arendtiana de identificar na Crítica do Juízo kantiano, isto é, o julgamento estético, os critérios para o debate e julgamento políticos. O que tanto Habermas quanto Arendt omitem - ou não vislumbram - é que o desenvolvimento de uma esfera racional de debate da arte - a Estética - pressupõe a anestetização da arte: Susan Buck-Morss demonstrou como a doutrina do "prazer desinteressado" de Kant, baliza da Estética moderna, se fundamenta justamente no mito do homo autotelus, auto-suficiente, insensível (desinteressado pelos) aos próprios sentidos, à estesia, ou seja, à sensação-efeito produzida pela arte. Por sua vez, Giorgio Agamben viu nesta "impossibilidade, para Kant, de definir o belo senão através de formulações puramente negativas" (prazer desinteressado, por exemplo), o estatuto híbrido do gosto, renegado na "perspectiva da estética tradicional", do qual Kant tinha ciência, mas com o qual não soube lidar: "o belo é um excesso da representação sobre o conhecimento e que é justamente esse excesso que se apresenta como prazer". 

A arte, ou a publicidade medievais (pois se indeterminavam), tais como entendidas por Habermas, enquanto insígnias do poder, aliam este excesso à esfera da dominação; já a esfera pública literária, também no modo como é retratada em Mudança estrutural da esfera pública, pretende controlar o excesso isolando-o na arte, "fechando o corpo", por assim dizer, do homem público. Separam-se, assim, significante e significado como campos distintos: obra e discussão do seu sentido. Se, no feudalismo, o que era controlado era o acesso aos significantes, na modernidade são os efeitos destes que tem de ser sublimados no debate racional: o prazer tem de se desinteressar. Isto não é sem conseqüências para o campo da política. As palavras de ordem que guiam a análise (e as futuras propostas) de Habermas são: "racionalizar a dominação". A cisão entre sujeito racional e objeto de discussão, intimamente relacionada à mais arraigada instituição da censura moderna, a figura do autor, que se diferencia do público (sendo, assim, mais fácil de ser identificado e controlado), permite isolar significante de significação, cada qual em sua esfera autônoma. E mais: a separação de algo como a esfera da arte (e da Estética, ou da representação) da esfera do poder torna possível consagrar esta como domínio da racionalidade, bem como separar algo como representação perante o povo da representação do ou pelo povo, retórica de discurso, esfera pública literária de esfera pública política. A perda da "aura" pela exposição/publicidade burguesa não acarretou a racionalização da dominação (e Habermas está consciente disso), mas eclipsou o elo por onde arte e política se unem, elo cuja elucidação é premente, com a conversão da publicidade em publicitarização (fato de que o teórico alemão também está ciente, mas que acredita ser possível superar dialeticamente). Isolando duplamente os significantes (a primeira barreira de contenção é a obra; a segunda é a Estética, que a racionaliza), a modernidade viveu a ilusão de poder se fiar na significação. Nunca como agora arte e política estiveram tão cindidos: a arte, separada da vida, não produz efeitos, nem prazer - tampouco representa a dominação. Enquanto isso, o poder monopoliza para si os atributos que alguns séculos atrás compartilhava com a arte. O excesso contido na arte se manifesta na política - e nesse sentido, a "sociedade do espetáculo", e não uma esfera pública política, é o que brota da esfera pública literária. Talvez só hoje seja possível falar na "arte da política".


"A estrela vermelha para mim não tem sentido. Eu a vi nos tanques sérvios que atiravam nos civis e em nós, repórteres. Agarrados à estrela vermelha, perpetraram crimes horrendos sob o título de limpeza étnica. Assim como a suástica, estrelas vermelhas levam ao desastre, quando se decide obedecer, cegamente, a um projeto de poder."
(Fernando Gabeira, deputado federal e símbolo do Gabeirismo. Folha de S. Paulo, 17 de julho de 2009)

LEGENDA
"Mussolini nunca matou ninguém. Mussolini mandava gente de férias para exílios internos".
(Sílvio Berlusconi, setembro de 2003. Fonte).

*Sobre o assunto, vale a pena conferir este texto de Slavoj Zizek publicado no Sopro e também este post do Hugo Albuquerque.


Dia do Juízo (II)

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Por que a terra aqui é tão vermelha? A sua primeira pergunta existencial foi uma pergunta a respeito da cor. Esse poderia ser o sentido da dúvida que o menino lançava ao tio, ainda que apenas em imaginação. Não tinha coragem de fazer a pergunta em viva voz. Como a reportagem que talvez viesse a ver muito tempo depois, falava em off.

A terra é vermelha de tão encharcada de sangue.

Mas isto não explicava tudo. A metáfora nunca explica tudo. Obviamente, o garoto não pensava nestes termos, mas poderia vir a pensar - ou, ao menos, intuía. O caminhão verde do exército passou pela estrada de chão, disseminando ainda mais a poeira rubra, disseminando ainda mais a dúvida. A criança entrou pra dentro de casa pra manter a sua camiseta branca, como mamãe ordenara. Não haveria de sujar-se. Desde então, não havia tempo para isso.

Sangue de quem? No colégio, algum tempo depois, as aulas de História lhe dariam a pista. Todavia, isto não explicava porque a terra onde seus avós moravam era vermelha, e somente como havia se tornado vermelha. Qual era, então, a cor primeira da terra?

***

(Dia do Juízo é uma ficção que publicarei, paulatinamente, aqui no blog, às sextas-feiras.)

I



"Eles (os senadores) são todos bons pizzaiolos."
(Lula, 15 de julho de 2009. Fonte).

Legenda
"Há uma maioria [no Congresso] de 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses."
(Lula, setembro de 1993. Fonte).


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Depois do debate memorável de ontem (aos participantes, vocês não imaginam o quanto lhes sou grato), é impossível não levar o Clube de Leituras adiante. Pensei em discutirmos Cinismo e falência da crítica, de Vladimir Safatle. O motivo da escolha é que o livro, não só se insere na mesma coleção, a "Estado de sítio", do Extinção, como aborda problemas correlatos, da perspectiva da crítica e da teoria. Sendo um adorniano heterodoxo, já que com um forte aporte lacaniano, Safatle vai mais a fundo na investigação do esgotamento das categorias tradicionais. Além disso, ele se propõe a analisar algumas saídas para o estado de coisas atual - tarefa que Antônio Barros nos propôs no último debate. Cinismo e falência da crítica teve uma recepção esquizofrênica pela Folha de S. Paulo quando foi lançado: o resenhista acusou Safalte de fazer uma salada de frutas teórica. Por mais que se discorde dos argumentos do livro, nada mais injusto: o autor mobiliza seu arsenal teórico adorniano-lacaniano para analisar propostas pós-estruturalistas. Acho que vale a pena lermos, pois marca uma inflexão de certa endogenia que marca a academia brasileira dos últimos anos. Safatle fez seu doutorado sob a orientação de Alain Badiou e participa ativamente do debate público brasileiro, tendo escrito recentemente sobre a assimetria entre Israel e Palestina  e a repressão policial aos estudantes da USP. Acho que rende uma boa discussão. Moysés Neto e Rodrigo Cássio já toparam. Mais alguém? Definiríamos a data em conjunto (só não posso de 12 a 23 de agosto). Ou sugerem outro livro?

Atualização (18 de julho de 2009): Confirmado o debate do livro do Safatle no dia 10 de setembro.

Atualização (17 de julho de 2009): Vale a pena ler essa interessante reflexão de Hugo Albuquerque sobre a blogosfera escrita a partir do debate do Extinção.


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Com o visual novo, este blog inaugura seu Clube de Leituras.

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"Não estamos mais diante da guerra, mas agora sim, diante da política como mera continuação da guerra" (p.29). Com esta inversão da famosa definição de Clausewitz, Paulo Arantes dá o tom, já nas primeiras páginas, que dominará todo o Extinção, seu mais recente livro, publicado na coleção "Estado de sítio", que ele mesmo coordena, da editora Boitempo. A guerra a que o autor se refere é de tipo novo, a "guerra cosmopolita", modalidade que se torna possível com o fim da guerra fria e a eliminação do inimigo em sentido tradicional. Dentro desta lógica, o novo inimigo - o terrorismo - ameaça agora não um Estado-Nação (ou um agrupamento deles), mas a própria humanidade (neste sentido, ele é um meta-inimigo - para os interessados, já escrevi sobre isso). Para conter "tamanha" ameaça, vige um "estado de sítio mundial" e uma guerra que é, ao mesmo tempo, cirúrgica (teleguiada e televisionada, o que provoca à anestetização, à insensibilidade quanto aos seus efeitos - "colaterais") e sem limites (na medida em que uma guerra contra tão nefasto e difuso inimigo é mais do que justa, justifica qualquer medida). A palavra-chave aqui - e, acredito, de todo o livro - é "energia": não se trata mais de dizimar as linhas inimigas, mas de "provocar o colapso" das "condições de vida" (p.55) do inimigo, eliminar a "vitalidade energética do adversário" (p. 54), como diz Virilio. Daí a crueldade explícita da nova guerra, a "assimetria do sofrimento" inerente a ela. E é pela energia, pela reprodução das condições de existência do capitalismo - altamente dependente do combustível fóssil -, que se guerreia, como a Segunda Guerra do Golfo deixou mais do que evidente até mesmo para os mais do que crédulos. O problema é que o "programa suicida do capitalismo", levado a cabo agora pelo "governo da exceção" empurra o mundo para a "falência ecológica generalizada", que, por sua vez, implicará em mais guerra: "Um aquecimento global dramático pode levar países à guerra por acesso a água, terras agriculturáveis e localizações para assentamentos populacionais" (p.81).

O modelo de "guerra cosmpolita" vem acompanhado de uma mudança no modelo territorial dos Estados (e do sistema econômico em geral): agora se trata não de manter um aparato produtivo, mas de controlar o acesso, o que exige aparato militar. Por isso, a noção norte-americana de fronteira volta a ser a dos tempos de conquista do velho oeste: fronteira passa a ser sinônimo de fazer a fronteira, à diferença que, hoje, a nova fronteira abrange, como o inimigo difuso, o mundo. (É curioso que Paulo Arantes não extraia todas as conseqüências conceituais de tal noção de fronteira. A ambigüidade que ela carrega é comum às palavras que indicam medida ou limite, a começar por aquela: medida é tanto um padrão, quanto a criação de um padrão ou a aplicação do padrão - "tomar uma medida" pra resolver um assunto, por exemplo. Seria interessante pensar nessa ambigüidade para compreender o que podemos chamar de "ideologia bandeirante" - bandeira deriva de bando, termo que indica pertencimento e exclusão, tanto é que dá tanto em bandana, bandagem, quanto em bandido e banimento - que dominou o pensamento paulista do começo do século XX, como também a insistência desenvolvimentista de penetrar o "Brasil profundo", da qual Brasília é a prova viva). Com essa fronteira ampliada, fica fácil intervir em qualquer parte do mundo em que o inimigo - ou o recurso energético desejado - aparecer (Sloterdijk assinala que os primeiros globos, contemporâneos às descobertas, isto é, aos primórdios da globalização, já apontavam para esta disponbilização do mundo). O paradoxo do novo modelo é que, prescindindo de uma base territorial unívoca, ele, no mesmo gesto em que abrange todo o mundo, permite que o próprio centro global se periferize - o sinal evidente é a população abandonada quando da passagem do katrina -, desde que certos espaços vitais privilegiados sejam protegidos na forma de bunkers. Estamos diante, portanto, de uma "fratura brasileira do mundo": o novo capitalismo de acesso (a recursos, a dados) é, na verdade, uma "volta redonda do capitalismo": "Por mais assombroso que pareça, já vivemos tudo isso antes: na Colônia. Daí a forte impressão que se tem hoje em dia, no coração do sistema mundial, de que o deserto em expansão por estas terras de miséria e impotência, na verdade, parece anunciar uma dramática periferização do planeta. Por isso, numa hora limiar como a presente, vem mais do que ao caso insistir na atualidade da assim chamada Acumulação Primitiva, que de primitiva, obviamente, não tinha nada, como de resto o demonstra o caráter 'avançado' do experimento colonial que engendrou a horrenda sociedade brasileira de ontem e de hoje. Explico-me: enquanto a Europa ainda se arrastava no emaranhado do Antigo Regime, em sua franja colonial se encontrava em plena ebulição um verdadeiro laboratório de vanguarda do capitalismo total. Várias guerras bárbaras de limpeza étnica depois, a banalização de todo um território, por força de uma razão econômica de novo tipo, repovoado por assentamentos humanos exclusivamente empresariais e, por isso, voltados integralmente ao mister selvagem de extração de mais-valia com uma intensidade e crueldade jamais vistas na história do trabalho humano, pelo menos desde os tempos do trabalho escravo nas minas do Império. O que antes se apresentava como uma zona residual de comportamentos extremos, a exceção que prosperava nos subterrâneos da normalidade burguesa em formação, desde então ameaça tornar-se a regra nos momentos de colapso do sistema. Foi assim com o apocalipse nazi: nunca é demais lembrar que a principal mágoa dos bons europeus com os hierarcas do Terceiro Reich era o tratamento "colonial" que lhes estava sendo dispensado. Completava-se assim o sentido da colonização. Quando se diz que o imperialismo está de volta, impulsionado por novas rodadas de acumulação por espoliação - privatizações, ajustes fiscais, expropriações via patentes, guerras de pilhagem, etc. -, é novamente disso que se trata, da recaída em nossa condição originária de exploração aberta, desavergonhada, direta e seca. De volta portanto ao deserto colonial de vanguarda da mais rasa necessidade econômica. Pois que de necessidade se trata, não há mais nada a fazer a não ser aquilo que deve ser feito, governa-se cada vez mais por medidas administrativas - exatamente como nas colônias" (p.274-275).

Aqui reside, a meu ver, o grande mérito do livro: apontar como a história da periferia do mundo, longe de ser uma excrescência ou estágio a ser superado, aponta para a verdade ou essência do sistema global. A famosa tese de Walter Benjamin (epígrafe da coleção em que o livro se insere), que só se tornou clara pra ele com a ascensão do nazismo - "o estado de exceção em que vivemos é a regra" - já havia sido enunciada, cá nos trópicos por gente tão diferente como Rui Barbosa, Araripe Jr. e Oswald de Andrade (e seria repetida anos mais tarde por um autodidata como Antônio Fraga). Talvez justamente este negligenciamento da experiência periférica explique a outra modalidade de extinção apontada por Paulo Arantes: "a petrificação geral da linguagem" (p.77), "um arranjo mental destinado a tornar desnecessário o simples ato de pensar" (p. 160), em última instância, "a extinção pura e simples da capacidade de discernimento" (p. 161). Acompanhando o estado de sítio global e permanente, teríamos um "estado de sítio moral da inteligência globalitária" (p.160), um "grau zero alcançado pela vida ideológica, quando 'conceito' se tornou sinônimo de 'ameaça'" (p.52). A dependência da periferia global em relação ao centro não era superável - era condição do sistema, e não ter apontado suficientemente para isso tenha nos impedido de chegar ao "conceito de história que corresponda a verdade", para retomar a tese benjaminiana, da atual periferização do mundo.

Se, por um lado, ou melhor, por um plano, concordo com o panorama da extinção da inteligência - ele cabe à grande mídia, por exemplo - por outro, não sei se estamos próximos ao fim do discernimento ou do "grau zero da ideológica" - depende do que entendemos por "grau zero". Em vez de fim do discernimento, talvez seja melhor falar de cinismo (todo mundo sabe que a invasão do Iraque se deu por causa do petróleo e não pra combater o terrorismo, e os senhores da guerra sabem que não enganam ninguém, mas estão se lixando para isso - sobre o tema, fica já a proposta, podemos discutir, no próximo Clube de Leituras, Cinismo e falência da crítica, de Vladimir Safatle). Em vez de "grau zero da vida ideológica", prefiro falar de um "grau zero" da terminologia ideológica: no novo cenário global, a antiga terminologia que pautava o debate se esvaziou, ou melhor, se indeterminou, perdeu a referência aglutinadora que possuía: tanto comunismo-igualdade, quanto capitalismo-liberdade se esvaziaram, sobrando um único termo, a democracia, que, diante de uma paz que se confunde com a guerra infinita, também se indeterminou (basta lembrar o Patrioct Act, e as "reformas ortográficas" brasileira e argentina, com a inclusão, nos respectivos vocabulários, das palavras "ditabranda" e "intradictadura"). Mais do que extinção da inteligência, o que vemos é a extinção da imaginação - que Arantes sugere, mas não aprofunda - o que nos impede de aproveitar a chance que o "grau zero" oferece, a saber, o de determinar novos sentidos aos antigos termos ou - o que seria ainda melhor - inventar toda uma nova terminologia da política e das relações sociais (é esta ausência da imaginação que caracteriza, a meu ver, o que o autor chama de "ajuste intelectual tucano-petista" - isto foi tema de um dos meus primeiros posts -, ainda que eu discorde bastante da tábula rasa que ele faz nas entrevistas, pois acredito que teria de matizar mais o cenário político nacional). 

O antropólogo anarquista David Graeber lembra da importância que a imaginação possuía na concepção marxiana de humanidade: "Nós pressupomos o trabalho numa forma que o marca como exclusivamente humano (...)", lemos n'O Capital, "o que distingui o pior arquiteto da melhor das abelhas é (...) que o arquiteto ergue sua construção na imaginação antes de erguê-la na realidade". Por isso Graeber afirma que "o que nos torna humanos não é tanto a 'razão' (ao menos no sentido moderno de resolução de problema), mas a imaginação. (...) Os humanos vislumbramos o que queremos antes de fazê-lo; como conseqüência nós também podemos imaginar alternativas. A inteligência humana é assim inerentemente crítica, o que, por sua vez, é crucial à concepção marxiana de história porque abre esta à possibilidade da revolução". Se 1968 quis colocar a imaginação no poder, talvez hoje, diante da ameaça da extinção da humanidade e de seu pressuposto, a imaginação, o correto seja voltar esta contra o poder.

Em linhas gerais - e para não me alongar ainda mais - esta é a minha leitura do Extinção, que considero um baita livro, ainda que me incomode o pouco o plano panorâmico adotado por Paulo Arantes - não sobre até as considerações conceituais, nem faz leituras detidas dos acontecimentos, preferindo um tom intermediário que o leva, a meu ver, a tomar certas conclusões apressadas - como em arte, em relação ao governo Lula, aos ataques do PCC, todos temas que espero que sejam levantados no debate e que talvez guardem relação com o passado político do autor. Mas me agrada algo que é característico em todos os textos do Paulo Arantes: a virulência, a crítica ferina e desbocada, sinônimo, a meu ver, daquilo que até pouco tempo se chamava engajamento, mas que prefiro chamar de vida, para contrapor ao tom morto-vivo, modorrento que domina os debates atuais. Deixei um bocado de temas de fora, mas esta é a vantagem de uma discussão coletiva: ela se mantém sempre aberta.


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O décimo-terceiro número do Sopro está no ar com o verbete Fetiche, do Severo Sarduy, traduzido pelo meu amigo Rodrigo Lopes de Barros Oliveira, uma análise da performance do ERRO Grupo feita por Fábio Salvatti, e os verbetes Intrusos e Negatividade, escritos pelos amigos do Flanagens. O site do Sopro foi incrementado e agora é possível visualizar os números dem Flash. A visualização nesta linguagem torna o panfleto mais próximo à sua versão impressa, além de permitir efeitos interessantes, como o de virar a página, o de aproximar o texto, etc. Para usar o zoom, basta clicar na página desejada, ativando o modo tela cheia, e aproximar ou diminuir o texto usando a barra de rolagem do mouse. No modo full-screen, um pequeno menu aparecerá no canto superior direito, onde é possível passar à página anterior ou à seguinte. Além disso, todos os verbetes publicados estão disponíveis em formato .html, compondo nosso dicionário crítico. 

Aos que se interessarem pelo texto de Fábio Salvatti e/ou pelo ERRO Grupo, recomendo também a leitura deste texto do Victor da Rosa

No número anterior do Sopro (12), publicamos um texto de Slavoj Zizek sobre a falsa simetria entre Nazismo e Stalinismo, e mais recentemente Hugo Albuquerque também escreveu sobre o assunto.   

Quem traduziu o texto do Zizek foi Rodrigo Cássio, responsável pelo que considero as melhores análises de cinema na blogosfera. Vale a pena conferir, por exemplo, esta leitura de Tarantino

Por fim, vale lembrar que amanhã tem a discussão de Extinção do Paulo Arantes, aqui no blog.


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Minha companheira de vida e trabalho, Flávia Cera, acaba de inaugurar seu blog, o mundo-abrigo, hospedado no Cultura e Barbárie, que agora contabiliza 4 blogs. Nem preciso dizer o quanto desejo o sucesso e a vida longa de Flávia na blogosfera, não porque ela seja metade de mim ou vice-versa, mas porque um multiplica o outro. Não somos um - cada um é dois. O "mundo-abrigo" é uma definição do amor.


No final do ano passado, a Folha de S. Paulo organizou um debate sobre os 50 anos do caderno Ilustrada. Uma questão, atravessada pela melancolia, dominou: como fazer que o jornalismo cultural volte a "pautar" a cena e o debate artísticos? A explicação mais convincente para o declínio do suposto papel de protagonista da cultura do jornal, foi a de Marcos Nobre, que argumentou que este se voltou ao mercado para poder fugir à tensão entre academia e imprensa. Por mais que teoricamente o argumento pareça fazer sentido, uma olhadela rápida no Ilustrada dos últimos meses mostra que não há tanto distanciamento quanto parece. Dois exemplos. Quando da palestra de Antonio Candido, intelectual de referência para a esquerda brasileira durante a ditadura militar, para o lançamento de um volume de correspondências de Mário de Andrade, a Folha cobriu o evento. Mas Candido não disse nada de importante, se limitou a anedotas. E o jornal as reproduziu, dois dias depois, no dia 27 de maio desse ano, como se tratasse de algo monumental, com direito a narrar a dificuldade de subir ao palco do acadêmico. No mesmo Ilustrada, dois meses antes, quando do lançamento de Leite Derramado de Chico Buarque, foi publicada uma resenha de tamanho desproporcional para o caderno, de Roberto Schwarz em que ele analisa o romance com as mesmas categorias com que analisou Machado de Assis a partir da década de 1970 e 1980, justamente o auge do jornal. Os mesmos intelectuais de referência do jornalismo cultural paulista continuam tendo espaço. E talvez esse seja o problema. O problema não é que o jornalismo cultural não promova mais o debate, não produza mais efeitos; o problema é que a arte, entendida pelas categorias das décadas passadas, não produz mais efeitos. É evidente que a notícia da palestra de Antônio Cândido sobre um livro de Mário de Andrade ou uma resenha de Schwarz em que ele compara Chico a Machado não produzirão efeitos. É este sistema do grande autor, do grande intelectual, da grande obra que não funciona mais. Outro exemplo: o rodapé literário e as resenhas, que seguem o padrão do jornal e, portanto, devem  classificar a qualidade do livro, dificilmente dão alguma indicação diferente do bom ou ótimo. Sabendo do mercado editorial brasileiro pelo Ilustrada, tem se um panorama excelente, quando a verdade é outra; cada vez são publicadas mais porcarias. Provavelmente, nenhum dos livros classificados como ótimo mudará a vida de alguém ou pautará debate duradouro.

Sylvia Colombo tentou defender o caderno: argumentou que, entre outras coisas, o Ilustrada cunhou o termo Bienal do Vazio, liderando a discussão nesse ponto e "debate a prisão da jovem pichadora e, mais ainda, promove este amplo debate sobre si própria, sua história e perspectivas". Ora, ao debater a prisão da pichadora, isto é, ao centrar-se na polêmica, o jornal revela a sua incapacidade de compreender "novas" manifestações artísticas ("novas" com muitas aspas, porque elas datam da "era de ouro" do caderno), como as performances e os happenings: as categorias com que lêem a cena cultural são (e possivelmente sempre foram) obsoletas. Cobrir a prisão da pichadora e debatê-la não faz do Ilustrada uma frente no debate cultural. No máximo o credencia como o Cidade Alerta da cultura - aliás, outro exemplo da incapacidade conceitual do caderno de ler o país: para os ilustrados, é apenas lixo. E o lixo não interessa. Interessa o "crítico literário mais célebre do país", não importa o que diga.

P.S.:  Não há nada tão ruim que não possa piorar. A situação cá na província é muito pior: não são as categorias inadequadas que regem; vige o silenciamento mesmo. Silenciamento da imprensa (e dos atores culturais em geral) tão arraigado que impossibilita a publicação de um texto como este, que se "limita" a apontá-lo.


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
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