(Fiquei sabendo, via NPTO, que Jürgen Habermas acaba de completar 80 anos. Tenho uma série de restrições quanto a "teoria da ação comunicativa", e explicito algumas delas no texto abaixo, integrante do meu work-in-progress sobre a censura, que fica, também, como uma singela homenagem ao "herdeiro" da Escola de Frankfurt).
No final de seu ensaio sobre Walter Benjamin, Crítica conscientizante ou salvadora: a atualidade de Walter Benjamin, Jürgen Habermas argumenta que "uma teoria da comunicação lingüística que reintroduza as intuições de Benjamin numa teoria materialista da evolução social deve pensar" a seguinte passagem de Para uma crítica da violência: "existe uma esfera de entendimento humano, não-violenta a tal ponto que seja totalmente inacessível à violência: a esfera propriamente dita do 'entendimento', a linguagem". Todavia, Habermas omite as frases de Benjamin imediatamente anteriores a essa, que não passa de uma conclusão tirada a partir daquelas: na "conversa (...) um acordo não-violento não apenas é possível, mas a eliminação por princípio da violência pode ser explicitamente comprovada com um tipo de relação importante: a impunidade da mentira. Talvez não exista no mundo nenhuma legislação que originalmente puna a mentira". A depuração racionalizadora do insight benjaminiano se baseia na reconstrução histórica que Habermas faz da emergência da "publicidade" (ou esfera pública) burguesa, na qual exercem um papel essencial tanto a noção benjaminiana de "aura", quanto a concepção arendtiana da "esfera social".
Algo como uma esfera pública feudal, argumenta em Mudança estrutural da esfera pública, só pode ser entendida como uma exibição pública do status e da hierarquia, uma demonstração da soberania - o que Giorgio Agamben irá chamar, mais recentemente, de "Glória", incluindo nela, porém, o próprio consenso visado pelo teórico alemão. Haveria representação e publicidade, mas não "no sentido de alguém ser representante da nação ou de determinados mandantes" e sim ligada "à existência concreta do senhor e que confere uma 'aura' a sua autoridade": "Enquanto o príncipe e seus terra-tenentes 'são' o país, ao invés de simplesmente colocar-se em lugar dele, eles só podem representar num sentido específico: eles representam a sua dominação, ao invés de o fazer pelo povo, fazem-no perante o povo". Habermas associa esta "representatividade" feudal ao que chama de "atributos da pessoa", como "a insígnia (emblemas, armas), hábito (vestimenta, penteado), gesto (forma de saudar, comportamentos) e retórica (forma de falar, o discurso estilizado em geral), em suma: um rígido código de comportamento nobre", e, para tanto, ampara-se na distinção de Carl Schmitt entre "estilo representativo" e a discussão e o raciocínio: aquele prescindiria destes, típicos de uma publicidade burguesa que só apareceria depois; sua racionalidade viria da fala que se "enuncia conforme a si mesma", fala esta "não-discutidora e não-argumentativa", e que torna "visível" "uma dignidade humana", pressupondo para isso "uma hierarquia, pois a ressonância espiritual da grande retórica provém da crença na representação reivindicada pelo orador". Ou seja, a publicidade medieval se basearia na pura exibição de significantes privilegiados cujos significados não podem ser discutidos, ou mesmo enunciados: é o próprio e simples uso destes significantes, a cujo acesso existe um controle, do poder que expõe o seu significado contextual, isto é, nada mais que o status de seus portadores. Tal representação não comunica nada, ou melhor, é a sua não-comunicabilidade que comunica: uma racionalidade baseada na crença - em outras palavras, uma ficção.
A "aura" e a "autenticidade" que tais selos exibem derivam do fato de que estes acompanham seus portadores em todo lugar, confundem-se com eles, não só exibem, mas são a sua originalidade, conferindo-lhes aquilo que Walter Benjamin chamou, no seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da arte, de "valor de culto": os nobres são orientados, continua Habermas, pelo "código de compoortamento cavalheiresco (...) não só em locais bem definidios, talvez 'em' uma esfera pública, mas a qualquer lugar, onde eles representam o papel de seus direitos senhoriais". A publicidade medieval é a própria aura.
Este estado de coisas - este estado da arte - se alteraria justamente com a entrada em cena do que Hannah Arendt chamou de "sociedade" ou "esfera social", a saber, a administração pública de assuntos privados, e que, para ela, impediria o florescimento de uma autêntica esfera pública. Habermas, por sua vez, na medida em que não entende o "dizer" do mesmo modo que Arendt (para ela, a função política da linguagem independe da produção de efeitos: "É verdade que o homem não pode proteger-se contra os golpes do destino, contra os golpes dos deuses, mas pode opor-se a eles e retrucar-lhes no falar e, se bem que esse retrucar não adianta nada, não mude a infelicidade nem atraia a felicidade, essas palavras pertencem ao acontecer como tal"), vê nesta guinada histórica promovida pelo mercantilismo justamente um dos fatores que implica na emergência da esfera pública moderna. Não só a base econômica do feudalismo começa a ruir, como também o constante intercâmbio de informações que se torna imprescindível com as atividades crescentes dos mercados e a formação de burocracias estatais e de exércitos permanentes, essenciais às disputas comerciais, abrem espaço para o que ele chamará de "publicidade" burguesa.
Porém, a esfera pública burguesa nasceria como esfera literária, antes de se tornar política - ainda que "esfera literária" aqui tenha sentido amplo, na medida em que é anterior à disciplinarização do saber, indicando, assim, um espaço de discussão, apresentação e exegese de textos e obras em que vige o argumento racional e não o status, espaço este brotado dos "cafés, dos salões, das comunidades de comensais", e posteriormente "mantido reunido através da instância mediadora da imprensa e sua crítica profissional". O conhecimento público - a publicidade burguesa - funcionaria como arma contra o segredo que fundamenta o saber hierárquico, baseando-se, para tanto, na idéia de igualdade entre os homens, ou melhor, como um debate público entre pessoas privadas, onde as diferenças ficariam de fora. Mas, tal esfera só se tornou possível com a mercantilização dos bens culturais: "como mercadorias, tornam-se, em princípio, acessíveis a todos", o que acarreta "o não fechamento do público": "todos (...) podiam, através do mercado, apropriar-se dos objetos em discussão. As questões discutíveis tornam-se gerais". É, portanto, a mudança provocada pelo capitalismo no estatuto da arte, que passa de insígnia do poder com valor imanente a objeto que extrai seu valor das cotações no mercados dos bens e das idéias, que permite que algo como uma esfera pública brote: "A arte, liberada de suas funções de representação social, torna-se objeto da livre escolha e de tendências oscilantes. O 'gosto', pelo qual, a partir de então, se orienta, expressa-se no julgamento de leigos sem competência especial, pois no público qualquer um pode reivindicar competência". A referência ao "gosto" é fundamental na argumentação habermasiana, como demonstra a citação que faz da passagem em que Gadamer trabalha "o ideário educacional de Gracian". Assim, a teoria da ação comunicativa não só indetificaria o "gosto" como saber constitutivo de uma esfera pública literária, que, por sua vez, criaria o ambiente (formaria um público) para uma esfera pública política, como o situaria também como parâmetro desta, na medida em que o gosto constituiria um saber sem verdade, a não ser o consenso de julgamento obtido pelo argumento mais racional - trata-se de tentativa análoga à arendtiana de identificar na Crítica do Juízo kantiano, isto é, o julgamento estético, os critérios para o debate e julgamento políticos. O que tanto Habermas quanto Arendt omitem - ou não vislumbram - é que o desenvolvimento de uma esfera racional de debate da arte - a Estética - pressupõe a anestetização da arte: Susan Buck-Morss demonstrou como a doutrina do "prazer desinteressado" de Kant, baliza da Estética moderna, se fundamenta justamente no mito do homo autotelus, auto-suficiente, insensível (desinteressado pelos) aos próprios sentidos, à estesia, ou seja, à sensação-efeito produzida pela arte. Por sua vez, Giorgio Agamben viu nesta "impossibilidade, para Kant, de definir o belo senão através de formulações puramente negativas" (prazer desinteressado, por exemplo), o estatuto híbrido do gosto, renegado na "perspectiva da estética tradicional", do qual Kant tinha ciência, mas com o qual não soube lidar: "o belo é um excesso da representação sobre o conhecimento e que é justamente esse excesso que se apresenta como prazer".
A arte, ou a publicidade medievais (pois se indeterminavam), tais como entendidas por Habermas, enquanto insígnias do poder, aliam este excesso à esfera da dominação; já a esfera pública literária, também no modo como é retratada em
Mudança estrutural da esfera pública, pretende controlar o excesso isolando-o na arte, "fechando o corpo", por assim dizer, do homem público. Separam-se, assim, significante e significado como campos distintos: obra e discussão do seu sentido. Se, no feudalismo, o que era controlado era o acesso aos significantes, na modernidade são os efeitos destes que tem de ser sublimados no debate racional: o prazer tem de se desinteressar. Isto não é sem conseqüências para o campo da política. As palavras de ordem que guiam a análise (e as futuras propostas) de Habermas são: "racionalizar a dominação". A cisão entre sujeito racional e objeto de discussão, intimamente relacionada
à mais arraigada instituição da censura moderna, a figura do autor, que se diferencia do público (sendo, assim, mais fácil de ser identificado e controlado), permite isolar significante de significação, cada qual em sua esfera autônoma. E mais: a separação de algo como a esfera da arte (e da Estética, ou da representação) da esfera do poder torna possível consagrar esta como domínio da racionalidade, bem como separar algo como representação
perante o povo da representação
do ou
pelo povo, retórica de discurso, esfera pública literária de esfera pública política. A perda da "aura" pela exposição/publicidade burguesa não acarretou a racionalização da dominação (e Habermas está consciente disso), mas eclipsou o elo por onde arte e política se unem, elo cuja elucidação é premente, com a conversão da publicidade em publicitarização (fato de que o teórico alemão também está ciente, mas que acredita ser possível superar dialeticamente). Isolando duplamente os significantes (a primeira barreira de contenção é a obra; a segunda é a Estética, que a racionaliza), a modernidade viveu a ilusão de poder se fiar na significação. Nunca como agora arte e política estiveram tão cindidos: a arte, separada da vida, não produz efeitos, nem prazer - tampouco representa a dominação. Enquanto isso, o poder monopoliza para si os atributos que alguns séculos atrás compartilhava com a arte. O excesso contido na arte se manifesta na política - e nesse sentido, a "sociedade do espetáculo", e não uma esfera pública política, é o que brota da esfera pública literária. Talvez só hoje seja possível falar na "arte da política".
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