De volta de uma excursão pela Europa, o Teatro Oficina, do diretor Zé Celso Martinez Corrêa, foi proibido de encenar O Rei da Vela, peça que havia estreado um ano antes, já na ditadura. Durante o período em que o grupo teatral esteve fora do país, o regime de exceção, instaurado em 1964, se endureceu com o Ato Institucional n. 5, decretado em dezembro de 1968, verdadeiro golpe dentro do golpe, como já se disse mais de uma vez. O Rei da Vela foi escrito por Oswald de Andrade em 1933 (publicado em 1937, mas sem ter sido encenado até a iniciativa pioneira do Oficina), quando militava nas fileiras comunistas (no mesmo ano, no conhecido prefácio de Serafim Ponte-Grande, declarava querer "ser pelo menos casaca de ferro da Revolução proletária"). Repleta de implementos formais - antiilusionismo, interpelação do público, intertextualidade, hibridismo de gêneros, metalinguagem (um dos personagens é O Ponto) - quando a tônica da época no Brasil era o teatro de costumes, a peça trata satiricamente das desventuras do capitalismo na periferia global. Abelardo I, dono de uma indústria de velas e agiota, cuja fortuna construiu a base do roubo e da corrupção, quer se casar com Heloísa ("de Lesbos") para obter o status social da família oligárquica-latifundária desta (retratada com todos os tons da decadência). Uma tal aliança entre "Ordem e progresso" (para usar o lema positivista da bandeira de nosso país) conta com a aprovação de Mister Jones, O Americano, verdadeiro "controlador" dos empreendimentos de Abelardo I - cabe a ele até mesmo o "direito de pernada", a noite de núpcias. Porém, na última hora, Abelardo I é traído por seu sócio/funcionário Abelardo II (que se dizia "socialista", numa clara crítica stalinista a toda forma de comunismo não-ortodoxo), que lhe arrebata criminosamente a fortuna e o casamento, pois "Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!" - tudo sob as bênçãos d'O Americano, a quem cabe a última palavra da peça "Oh! good business!". O que está em jogo é um diagnóstico bem acabado da mercantilização do homem, como agudamente percebeu Graciliano Ramos, ou ainda, segundo Gonzalo Aguilar, "un instrumento de disección de los sujetos y de su deseo en una sociedad entregada al automatismo de la mercancia": o mesmo substituindo o mesmo incessantemente (o que se vê pela homonímia dos personagens principais, mas também no nome das outras: além de O Americano, temos O Cliente, Secretária n.1, etc), o Capital e sua "história natural" (circular) "da destruição". Deste modo, não surpreende que a encenação da peça tenha sido proibida por um regime que se arrogava a função de proteger o país das ameaças de "subversão" (leia-se comunismo). O que pode parecer surpreendente é que, feitas algumas alterações nos diálogos (em especial, mudanças pronominais e supressão de uma ou outra palavra, além de um ou outro corte integral de frase), que não modificam a trama e o tom satírico e desmistificador, o órgão da censura autorizou que fosse levada aos palcos novamente. De certo modo, podemos dizer que as modificações não atingem o conteúdo da peça, se restringindo a aspectos aparentemente marginais da forma em que é enunciado - e o maestro Júlio Medaglia nos lembra que os censores da ditadura preocupavam-se mais com a forma do Tropicalismo do que com o conteúdo de uma música de Geraldo Vandré, por exemplo. Se olharmos de perto as alterações, veremos em sua quase totalidade um mecanismo de desdiferenciação (ou desidentificação, termos que prefirimos à indiferenciação) formal da linguagem em funcionamento. Assim, por exemplo, o termo "renovação" substitui o mais carregado ideologicamente "revolução social": mesmo que a ditadura houvesse se iniciado com a auto-intitulada "Revolução de 64", a palavra remetia, indubitavelmente de modo mais forte, ao ideário de esquerda. Já "renovação" possui uma grande dose de ambigüidade no cenário político, podendo tanto remeter a um programa reformista e mesmo revolucionário "progressista", quanto a uma proposta "conservadora" - e o próprio partido de apoio ao regime militar se chamava Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Mas a função desdiferenciadora fica ainda mais clara quando ela opera de modo a retirar qualquer referência direta a sujeitos, tornando toda referência impessoal ou "de-subjetiva". Assim, "A polícia me perseguiria" dá lugar a "Eles me perseguiriam" - e a função de classe da polícia, de servir a uma parcela identificada da sociedade, desaparece: "Para defender meu dinheiro" passa a ser "Para nos defender". Depois da censura, a guerra "contra a Rússia" se torna uma guerra "contra eles". O caráter conflitual e estratificado das relações sociais, com a sua oposição entre proletários e burgueses exploradores da força de trabalho, também se esfuma: "uma multidão de trabalhadores para nos dar a nota" fica sendo "uma multidão para nos ajudar". O que se deve sublinhar novamente é que, no contexto da peça, tais alterações não escondem o que apagam formalmente. Isto fica mais evidente quando o estatuto de colônia econômica do Brasil não é omitido pela censura, que faz questão, apenas, de apagar os nomes dados aos imperialistas: "Os ingleses e os americanos temem por nós" passa a ser "Todos temem por nós"; do mesmo modo "Eu li num jornal que devemos só à Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só chegaram até aqui trinta milhões" se torna "Eu li num jornal que devemos só para um trezentos milhões de libras". Todavia, O Americano, Mr. Jones, não foi cortado da peça; ao contrário, continua controlando as peripécias dos capitalistas brasileiros e continua cabendo a ele a última frase. Deste modo, a explicação mais simplista segundo a qual as modificações tornariam a peça mais palatável ao ideário pregado pela ditadura (a idéia de "segurança nacional", de desenvolvimento econômico, etc.) revela-se insuficiente, na medida em que o enredo mostra por si o que a impessoalização gramatical visa esfumar. Esta preocupação excessiva e quase exclusivamente formal não é uma excrescência da ditadura, mas o seu modus operandi. Se, de fato, a exceção funda a normalidade, como queria Schmitt, então a censura prepara a linguagem para o consenso não conflitual - neste sentido, a ditadura de fato se deu para defender a democracia, como diziam os militares. É preciso correlacionar a censura de O Rei da Vela com o momento presente para percebermos a sua função de longo prazo no interior da linguagem.
Uma das primeiras modificações da censura na peça foi modificar "algum comunista morto num comício" por "alguém morto num comício". Se restava evidente na década de 1930, quando O Rei da Vela foi escrito, ou no final da década de 1960, quando foi encenado, que a participação em um comício proibido indicava ao menos militância (pertencimento ou simpatia a algum grupo político - daí o termo identificador "comunista"), hoje isto parece ser tudo menos óbvio se levarmos em consideração recentes relatos sobre a ditadura. Por exemplo: dois filmes latino-americanos recentes sobre os regimes militares da segunda metade do século XX, o argentino Kamchatka (2002), do diretor Marcelo Piñeyro e o brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger. Ambos optam por focar o drama de filhos de opositores do regime. Provavelmente com a justificativa de que o enfoque era transversal, não ouvimos menção neste filme a nenhuma informação sobre nomes de facções, não apreendemos nada sobre a difícil organização da militância clandestina - percebemos apenas a bondade e a doçura dos pais perseguidos pela ditadura, isto é, seu idealismo. Não há, além de pais, filhos, amigos e soldados sem nomes, sujeitos militantes e sujeitos perseguidores; há apenas, para usar os termos que a censura usou n'O Rei da Vela, "Nós", "Eles", "Alguém". Sob o pretexto de mostrar a vida no regime militar na ótica de uma criança, os filmes acabam infantilizando o público, no pior sentido possível. Podemos escolher outros relatos: o dos veículos de comunicação, muitos dos quais apoiaram (mesmo material e operacionalmente) a ditadura, e que hoje narram o embate e a derrocada do regime como algo impessoal, sem sujeito, na qual contribuiram, evidentemente, estes próprios veículos. "Nós". "Alguém". "Eles". Por outro lado, por mais que identifiquemos os grupos e indivíduos que lutaram contra a ditadura, o seu fim não pode ser atribuído apenas a eles. O regime militar só cede quando a exceção não é mais necessária como tal, quando ela se confunde com a normalidade - quando a censura não precisa mais se concentrar em um órgão.
Em 2002, o então candidato a presidente do Brasil, Lula, publicou a famosa "Carta ao povo brasileiro" em que se comprometia a continuar com uma série de medidas dos governos anteriores - superávit primário, acordos com o Fundo Monetário Internacional, controle da inflação -, bem como a honrar os contratos nacionais e internacionais. À época, não havia perigo nenhum de calote da dívida, estava mais do que claro que o Partido dos Trabalhadores já estava integrado no establishment neoliberal, porém a quase totalidade dos analistas políticos da mídia se apressou em acentuar a importância da "Carta" no processo eleitoral, que terminou com a vitória de Lula. A "Carta", evidentemente, não possuía valor jurídico algum, não instaurava uma obrigação cujo descumprimento levaria a alguma sanção (como se viu em episódio mais recente, quando José Serra não levou a cabo o compromisso, registrado em cartório, de não renunciar o cargo de prefeito de São Paulo para disputar o governo do estado paulista). A desdiferenciação programática, para produzir efeitos, não deve ser apenas exercida, deve ser manifestada na linguagem: o vocabulário também deve ser consensual. Por outro lado, até mesmo o que não é dediferenciado pode circular, desde que não produza efeitos: "o Império não censura nada", lemos em uma das "Quinze teses sobre a arte contemporânea" de Alain Badiou. Estandardização e multiculturalismo caminham lado a lado: "Coca-Cola. Viva as Diferenças", verdadeira imagem dialética ready-made da publicidade. No lugar das diferenças próprias, uma gigantesca e informe "salada norte-americana", para usar uma intensa imagem de Mário de Andrade, atraente e insossa, de conteúdos os mais variados, mas desdiferenciados numa justaposição de medida homogeneidade, que retira todo efeito de cada sujeito/identidade. Assim, se na política brasileira atual, os dois principais partidos do país, PT e PSDB são indistinguíveis até mesmo na linguagem (e daí Gilberto Felisberto Vasconcellos tê-los cunhado, deliciosamente, "petucanismo"), entende-se porque nas ruas se ouve que "Eles são todos iguais" ou, numa versão anarquista infantil, que "A culpa é do sistema", sem sabermos ao certo o que quer dizer "sistema" ou quem são "eles". A censura já está disseminada.
Se a desdiferenciação deve ser manifestada na esfera da linguagem, está explicado porque hoje em dia não basta consentir com a democracia, mas afirmá-la sempre. Há uma obrigação em se dizer a favor da democracia. Os veículos de comunicação passaram de censurados a censores: os arautos do consenso democrático. A desdiferenciação que está em jogo neste processo se revela, no Brasil, sempre que há uma tentativa de abrir a "caixa-preta" do regime militar (reivindicação de abertura de arquivos militares, concessão de indenização a parentes de militantes torturados ou mortos, etc.): a mídia, em sua ampla maioria manifesta-se contra, em nome da democracia, para evitar o "revanchismo" - e, assim, vinga a esdrúxula interpretação da Lei da Anistia, pela qual esta beneficiaria também os militares. (Analogamente, é o mesmo que se passa toda vez que a discussão sobre as cotas raciais vem à tona: os veículos midiáticos se apressam em dizer que em um país "mestiçado" como o nosso, as cotas incentivariam um racismo que aqui não existiria). Há um consenso esvaziado que se deve afirmar. Ao analisar a linguagem em sua Aula inaugural, Roland Barthes insistia que ela era fascista não porque proíbe dizer, mas porque obriga dizer. Obriga a dizer, acrescentaríamos hoje, palavras que perderam todo e qualquer sentido.
Transgênicos: Ao romper a barreira das espécies, o homem-Médico cria o seu Monstro benigno. Genes de bactérias inseridos na soja permitirão acabar com a fome no mundo em um passe de mágica (ainda que só os bichos-grilo comam soja - mas isto não é um problema, o Mercado pode obrigar a todos que se tornem naturebas, sob pena de ficar nervoso). O super-arroz acabará com os problemas de desnutrição e carência de vitaminas (ainda que para isso as pessoas precisem comer uma quantidade absurda do arroz transgênico, fato que agradaria muito ao Mercado). Além disso, sintonizado com a era das fusões, a transgenia possibilitará fundir remédios com alimentos: antibióticos na carne, por que não? Os estudos de impacto ambiental, ao contrário do que dizem seus detratores, comprovam o caráter benéfico do milho transgênico: contamina rapidamente o milho crioulo, acabando com as variedades coloridas e de aspecto sujo, uniformizando a qualidade. O patenteamento das variedades transgências também permite maior controle de qualidade das safras: os agricultores têm de comprar as sementes direto da empresa, diminuindo o comércio ilegal e garantindo ao consumidor um produto aprovado por grandes empresas respeitadíssimas nas bolsas de valores mundo afora. A transgenia salvará o mundo, ainda que o mundo pereça (e apesar dos eco-chatos).
("Limites a Chávez, editorial da Folha de S. Paulo, 17 de fevereiro de 2009)
LEGENDA
Folha Explica a Reforma Ortográfica I
"Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional."
(FSP, 18 de fevereiro de 2009)
Sabemos que vivemos em um ambiente autoritário quando a gritaria por prisões, extradições, detenções, etc. etc., por parte da opinião pública (aquela que se publica) não só ofusca, mas impede ver o outro lado da moeda. Enquanto, por exemplo, um caso como o de Cesare Battisti mobiliza os jornalões e os semanários, fazendo com que a Carta Capital, que ainda mantinha uma pose de diferente, caísse no blá-blá-blá do senso comum que domina o nosso jornalismo, com Mino Carta vociferando em seu blog e na sua revista sobre o "caráter" do asilado italiano, sublinhando a quantidade de "rapinas" que este teria promovido, a prisão de um grupo de jovens franceses acusados de terrorismo, pelo simples fato de portarem a lista de horários de linhas de trens, passou totalmente desapercebida (Leneide Duarte-Plon escreveu sobre o descaso da mídia sobre este fato no Observatório da Imprensa, remetendo-se a artigo de Giorgio Agamben- em francês; a tradução ao português, por Vinícius Honeko sairá no próximo número do Sopro). O significante Terror, como já argumentei aqui, dualiza todo debate, capturando qualquer campo de indiferença no pólo da inimizade. No Blog do Mino, o editor de Carta Capital argumenta que os que se acham esquerdistas e defendem o asilo a Battisti (ainda que não concordem com a sua antiga forma de militância), são na verdade fascistas. Assim, Giorgio Agamben, que assinou um apelo pela liberação de Battisti quando de sua detenção na França, junto com outras 2200 pessoas, seria fascista (o apelo encontra-se no livro, disponível online em italiano e formato .pdf, Il caso Battisti - L'emergenza infinita e i fantasmi del passato, de Valerio Evangelisti, Giuseppe Genna, do coletivo Wu Ming I, entre outros - algumas informações deste post foram retiradas de lá). Assim, Mino desdenha de Dalmo de Abreu Dallari, talvez o maior jurista brasileiro vivo, dizendo que ele "não conhece a história e tampouco a geografia". Já que Mino conhece tanto de história e geografia, qual o tipo legal do crime de rapina que ele insiste que Battisti cometeu? Ele, um crítico da idiotice da mídia brasileira, deveria saber que no Brasil existe Furto (art. 155 do Código Penal) e Roubo (art. 157); Rapina é o tipo legal na Itália (art. 628 do Código Penal italiano) - ainda que a palavra exista em nosso idioma, em um debate onde o que interessa é a questão legal não faz o menor sentido, equivale a dizer que fulano cometeu Robbery. Ele que conhece tanto história e geografia deveria lembrar que um dos advogados de Battisti no Brasil, Luiz Eduardo Greenhalgh, não só é defensor de Daniel Dantas (que, por sua vez, entregou um dossiê falso a Veja sobre contas no exterior de integrantes do governo, estava por trás da privataria, etc etc - numa cadeia de eventos em que insinua que Battisti faz parte de uma conspiração contra Lula), mas foi um dos grandes advogados de perseguidos políticos pela ditadura (e daí o motivo de sua contratação por Battisti). Deveria lembrar também que Tarso Genro vive insistindo que os responsáveis pelo terror praticado pela Ditadura Brasileira devem ser julgados (Mino dá a entender o contrário) e que aqueles que são contra são favoráveis à extradição de Battisti -poderíamos, num exercício de caricatura, que Mino Carta tanto pratica, personificá-los na figura de Gilmar Mendes, que, aliás, votou a favor da extradição do Padre Medina, integrante das FARC, mesmo o Brasil tendo concedido-lhe asilo e que tende, por isso mesmo e pela recusa em soltá-lo, a votar a favor da extradição do italiano (pela lógica de concatenação de Mino, teríamos: Mino a favor da extradição de Battisti, Gilmar Mendes a favor da extradição de Battisti e contra o julgamento de militares brasileiros torturadores e assassinos = Mino contra a punição aos crimes praticados pela ditadura brasileira. Tudo fica fácil assim. Se Mino entende tanto de geografia e história, não entende bulhufas de Direito. Como bom jornalista que diz ser - e, de fato, costuma ser -, deveria conhecer o parecer de Nilo Batista (devo a informação ao amigo advogado Bruno Domingos): "O princípio da dupla incriminação proíbe a extradição de alguém cuja conduta, no país requerido, teve sua punibilidade (rectius, sua criminalidade) extinta pela anistia. Os delitos atribuídos a Cesare Battisti são anteriores à Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Todos os indivíduos, brasileiros ou estrangeiros, que os praticaram até aquela data (...) foram anistiados". Mas os erros mais graves de Mino Carta, a meu ver, são: 1) a insistência, compartilhada pela classe política e mídia italianas, de que os crimes cometidos nos anos 1970, foram crimes comuns (talvez Mino não endosse essa visão no todo, mas não se cansa de argumentar que Battisti era um "rapineiro" contumaz, não tendo praticado os crimes por motivação política) e; 2) a de que a Itália combateu o "terrorismo" da época sem recurso a leis excepcionais, sendo internacionalmente reconhecida por isso. O segundo erro é o mais grave: nos anos setenta pipocaram leis e medidas de exceção na Itália, incluindo um decreto-lei que aumentava o tempo da prisão preventiva, um decreto secreto do governo dando ao general Carlo Alberto Dalla Chiesa poderes especiais no combate ao terrorismo, um decreto interministerial instituindo o "cárcere especial", a Legge Reale, a lei n. 534/77 que limitava a possibilidade da defesa argüir nulidade processual em caso de violação de garantias do réu, a chamada "legge Cossiga", que possibilitava a detenção preventiva de suspeitos por 96 horas (sem a possibilidade de contatar advogado), o chamado "Decreto Moro", que acabava com o limite da duração das interceptações telefônicas, etc etc etc. A quantidade de decretos com força de lei, por si só, já seria evidência suficiente para se suspeitar de que o combate ao "terrorismo" não se deu no marco legal democrático de até então. A quantidade de direitos retirados dos "suspeitos" torna a evidência em prova cabal. Mino Carta, ao tratar do tema, invocou Hannah Arendt, como costuma fazer, para sublinhar que só lhe interessa a "verdade factual" (eu prefiro: "contra fatos, há Argumento"). Honestamente, não sei de onde diabos ele tirou que esse ponto é tão central a Arendt. Suponho que seja de uma leitura enviesada de Eichmann em Jerusalém. Como já indica o subtítulo, trata-se, antes, de um "relato sobre a banalidade do mal", isto é, de uma reflexão sobre como foi possível a um burocrata participar da indústria de morte nazista como se estivesse apenas exercendo a sua burocracia habitual, sem remorso, sem culpa, afinal estava apenas cumprindo ordens. Mino Carta deveria pensar em como a banalidade da exceção a converteu em regra. E em como o senso comum a respeito dos turbulentos anos 1970 italianos que ele subscreve ajuda na sua reprodução, na sua permanência. Nesse sentido, ele tem razão: as leis com que a Itália combateu a sua guerra civil não foram de exceção: afinal, muitas delas não foram revogadas até hoje.
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