A invenção do inimigo: terrorismo e democracia

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Nota: o texto que segue é um trecho de meu projeto de doutorado, e constitui um dos pressupostos do conceito de censura que pretendo desenvolver. Planejava postá-lo só futuramente, mas decidi adiantar para não perder o fio da meada da discussão sobre o terrorismo - em especial para tentar abordar a questão levantada por Idelber Avelar nos comentários de O que é o Terror?, aqui neste blog: a diferença entre terrorismos (o do Estado de Israel e o dos homens-bomba palestinos, por exemplo). Se meu texto anterior, como o nome já indica, era a tentativa de traçar uma ontologia do Terror, este se debruça sobre o problema da invenção do terrorismo como inimigo das democracias contemporâneas, ou melhor, como inimigo absoluto e vago da idéia de democracia mesmo. Invenção, isto é, criação e não origem natural (retomando a distinção de Nietzsche tão essencial a Foucault - por exemplo, a série de conferências que o filósofo francês deu no Brasil à época da ditadura, A verdade e as formas jurídicas, se baseia nesta diferença). Daí uma conseqüência (e um aviso): democracia e terrorismo, aqui neste post, devem ser lidos como se estivessem sempre entre aspas. Tomo-as como termos variáveis, de sentido amplo (assim como "bem geral", "calamidade pública", e mesmo "liberdade", como vimos a respeito de Robespierre), cuja definição, em última instância, cabe a um gesto de construção decisionista. Evidentemente, há todo um processo de legitimação discursiva, de construção de sentido, por trás da re-definição destes termos basilares, processo onde a mídia  é essencial ( como exemplo, basta ler o post abaixo, a primeira "Frase Feita" do blog)  - e é para a sua análise que pretendo me voltar assim que delimitados alguns pressupostos, como esse.

O jurista alemão Carl Schmitt viu no liberalismo e no seu correlato político, a democracia parlamentar, o sintoma de uma "era das neutralizações", onde a oposição amigo-inimigo, condição do político se esfumaçava em uma miríade de interesses, o conflito cedendo lugar à discussão infinita. A decisão, que para o jurista alemão definia conceitualmente a soberania, que definia na prática quem era o soberano, não pode ser tomada em tal contexto: no seu lugar, aparece o "acordo", o "compromisso", na base dos quais está o sentimento de que "uma solução diferente seria melhor", para usar a expressão de Erich Ünger, retomada por Walter Benjamin no seu famoso ensaio sobre a violência onde partilha das críticas de Schmitt ao parlamentarismo. O que não resta claro na análise schmittiana, que parece oscilar entre as duas possibilidades - talvez por motivos ideológicos concretos (era um político conservador, defendia o recurso ao estado de exceção, e aliou-se brevemente ao nazismo) -, é se a decisão é transferida para uma outra esfera, a economia, ou se é protelada ad eternum, e a política substituída por uma máquina gerencial. De nenhum modo estas soluções são contraditórias, mas nem atreladas se mostram suficientes para dar conta do problema da decisão em tempos de guerra democrática contra o terror (isto é, de "capital-parlamentarismo" na formulação de Alain Badiou, ou de "Estado espetacular integrado", na de Guy Debord).

Ao definir O conceito do político, Schmitt assinalava que a decisão soberana é aquela que define o inimigo e, por subtração, o amigo (a identidade do povo é sempre forjada negativamente por um mecanismo de diferenciação, daí o "truque lógico" da idéia schmittiana de soberania segundo Susan Buck-Morss, de que tratei um pouco em O que é o Terror?, neste blog). Ou seja, a decisão, de-cisão, é aquilo que une ao separar, que une na cisão. Para que a oposição amigo-inimigo seja, de fato, política, segundo Schmitt, de nada valem as inimizades pessoais, mas a hostilidade pública e coletiva que tem como horizonte a guerra: "Ela não carece de ser algo de cotidiano,(...) contudo precisa permanecer presente como possibilidade real, enquanto o conceito de inimigo tiver sentido" (grifo nosso). Sem, portanto, a possibilidade do "aniquilamento físico do inimigo", do outro, a possibilidade da "negação ontológica do outro ser", não há decisão, não há oposição amigo-inimigo, não há política. Se hoje, a guerra não é mais extensão da política por outros meios, mas, na contundente inversão da fórmula de Clausewitz efetuada por Virilio, Foucault e, mais recentemente e mais perto de nós, Paulo Arantes, a política "mera continuação da guerra", está evidente que a decisão (e, portanto, a política no sentido de Schmitt) continuam em pleno vigor no auge da globalização da "democracia" e do "fim da história". Podemos dizer que o fenômeno, longe de demonstrar uma cisão entre legalidade formal e realpolitik, carta de boas intenções e the real deal - em outras palavras, que a democracia parlamentar seria uma falsa máscara utilizado por um soberano faminto de sangue -, revela uma alteração modal da relação entre política e guerra.

Giorgio Agamben tem insistido que, na "ontologia da potência" que Aristóteles legou ao Ocidente, a potência não é somente possibilidade (poder) de ser, mas também possibilidade (poder) de não ser, impotência. Poder fazer algo é também poder não fazê-lo. De fato, a potência pura seria justamente o ato de conservar a potência, isto é, de não passar ao ato mais do que a potência de não. É deste modo que a potência (e o poder) se conservam sem se "gastar", podendo atingir um limiar de onipotência que Aristóteles vislumbra no "pensamento do pensamento", o pensamento que não pensa mais do que a si mesmo (e que equivaleria ao soberano no estado de exceção). Ora, se o que caracteriza a política para Schmitt é a possibilidade da guerra, a "democracia parlamentar", enquanto impossibilidade do conflito, enquanto conversão do agônico em discussão sem fim, longe de esfumar a soberania ou transferi-la para um mais além ou mais aquém, é a sua própria conservação, a potencialização da potência guerreira. Daí que a possibilidade da guerra sempre subsista, em um plano metapolítico ou metapotencial: o meta-inimigo da democracia é todo aquele que afronta esta potência pura, esta impossibilidade de guerra, todo aquele que afirma a possibilidade do conflito, que afirma a existência de um "amigo" ou "inimigo", que afirma a política em sentido schmittiano.  Para aniquilar a possibilidade da guerra, para mantê-la impossível (e isto quer dizer, infinitamente possível), a democracia guerreia. Por isso os falcões norte-americanos não estão longe da verdade quando dizem lutar pela democracia. Uma tal guerra, enquanto diz respeito não a uma oposição política, mas à própria possibilidade da política, à possibilidade da oposição, à possibilidade da possibilidade da guerra, pode ser travada contra qualquer um e, o que é pior, sem previsão e limitação. A anulação do conflito não o anula, mas o potencializa ao infinito. Ao manter a guerra sempre possível, a política em tempos de democracia global não se esgota em nenhuma guerra. Trocando em miúdos: na política "tradicional", sob o viés schmittiano, na medida em que o povo se definia com a definição dos seus inimigos, havia sempre a possibilidade destes serem aniquilados e, assim, os marcadores que permitiam falar em "amigo" deixarem de fazer todo sentido. A democracia parlamentar, verdadeira "Paz perpétua", elimina esta possibilidade, introjetando os inimigos na discussão partidária - criando, assim, o inimigo absoluto, o que se nega a esta introjeção: o "terrorismo", que afirmaria, desde sempre, a possibilidade, em primeiro grau, da oposição.

Se o caminho está correto, sugiro chamar "censura" o dispositivo que visa capturar todo indício de conflito na linguagem, convertendo-o em discussão não-oposicional, não-cisional, a saber, em consenso. Em suma, o dispositivo de desdiferenciação da linguagem. "Neutralização", o termo adotado por Schmitt, talvez não seja o mais adequado para dar conta da introjeção das oposições conflituais no palco da democracia moderna. Se a identidade (amigo-inimigo) deve dar lugar a uma meta-identidade com a democracia, com a impossibilidade do conflito, então ela tem de ser des-diferenciada: sua diferença específica deve ser capturada de modo a não mais produzir efeitos (conflitos). A possibilidade de guerra que cada identidade-oposição traz consigo deve se apagar em nome da metapossibilidade que a democracia conservará. Este processo de desdiferenciação, para funcionar em um sistema baseado na discussão, tem de operar, antes de mais nada, na linguagem. É o que proponho chamar de censura.


P.S.1: Dado biográfico curioso: a reflexão embrionária deste texto - relacionar o conceito schmittiano de política com a ontologia da potência de Giorgio Agamben - foi fruto da inquietação, lá nos idos de 2002, de meu primeiro artigo para uma revista acadêmica - que acabou, graças a deus, não sendo publicada.
P.S.2: Final de semana, para ficar na discussão do terrorismo, posto aqui uma resenha de
Evidências do Real, de Susan Willis, traduzido este ano pelo Boitempo. O livro parte de pequenos aspectos culturais do pós-11 de setembro para abordar a sociedade e a política norte-americanas.

2 Comentários

Caro,

Muito interessantes os textos do seu blog. Pesquiso Agamben no dpto de Filofia da USP, gostaria de saber de qual livro da Buck-Morss vc retirou o comentário sobre Schmitt.

Abraços e parabéns.

caio


Olá Caio, agradeço a visita. A idéia de "truque lógico" é desenvolvida no começo de Dreamworld and Catastrophe (creio que há tradução ao espanhol), onde Buck-Morss analisa a passagem da utopia no oriente (URSS) e ocidente.

Abraço


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

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