Desde o dia em que fui agraciado (não consigo encontrar palavra melhor para exprimir a felicidade com que o recebi) com um convite para escrever nos domínios da Cultura e Barbárie, vim pensando em qual o primeiro texto que postaria no blog. Deve fazer mais de um ano, já, desde que o convite foi feito às portas do Blues Velvet, e quase um ano desde que meu login e o endereço a ele atrelado foram criados. Nesse período, nada, claramente, veio a ser publicado aqui, o que certamente enche o título do blog de uma premonição irônica. É esse mesmo título, contudo -- que teima em apostar na inafastável possibilidade de que nossas vontades e nossas ações provem-se desastrosas, contra a perspectiva claustrofóbica do deserto e da ausência de mudança --, que justifica o texto abaixo, escrito por mim apenas porque resolvir repetir e organizar a legendagem um tanto mal sincronizada e mal revisada (conquanto absolutamente indispensável) de um vídeo de Antonio Negri sobre o #OcupaRio da Cinelândia, compartilhado no twitter pelo Alexandre.
Nem a fala, portanto, nem a tradução são minhas, que me limitei a dar-lhes corpo de texto, o que fiz por não conseguir acompanhar a maneira como foram dispostas.
O vídeo pode ser acessado aqui. Segue:
[Mulher: No dia 22 de outubro, nós ocupamos a Cinelândia! E fizemos dela o que ela deveria ser: uma praça, um lugar aberto, para debates e para todas as pessoas, e não só para os passantes, mas para os viventes também. Essa tem sido a melhor experiência da minha vida.]
Negri: O problema é que efetivamente trata-se de uma coisa tão nova que fica difícil dar-lhe alguma definição. É possível somente fazer algumas aproximações, algumas tentativas de descrição. O que me parece absolutamente importante, em primeiro lugar, é a crítica da representatividade, e da representatividade mesma do próprio movimento -- e essa é uma das razões pelas quais não me parece que um intelectual que chega de fora possa falar no interior de uma situação que não conhece, na qual se combinam diferentes estratos sociais, pessoas que vivem uma realidade e uma experiência completamente novas. Provavelmente existe, dentro dessa nova situação, um fermento que produz não simplesmente novas ideias -- já que, provavelmente, novas ideias podem ser produzidas em qualquer lugar --, mas que produz, sobretudo, uma coisa absolutamente fundamental, que é um método novo. É este estar-juntos, desde o qual começar a construir não algumas maiorias, nem organizações, mas momentos de consenso, momentos de forte comparticipação que podem renovar a própria estrutura da experiência política. Essa me parece uma coisa absolutamente essencial que põe em questão a questão da representatividade, não simplesmente no que diz respeito aos problemas das pessoas, mas também porque não se compreende mais onde essa representatividade se localizaria -- quem sabe o contrato social que é preciso fazer, que se precisaria realizar, no que diz respeito às grandes potências financeiras frente à derrubada massiva de todas aquelas formas que, até agora, as constituições têm se dado em seus respectivos Estados-nações.
[Homem: Aqui não temos ricos, não temos pobres; aqui não temos negros, não temos brancos. Aqui não temos ninguém melhor do que ninguém. Não temos líderes: todos somos líderes, como já foi falado. Todos os que estão aqui sabem, no mínimo, que estamos aqui por uma sociedade melhor, por um mundo melhor.]
Negri: Trata-se de uma resposta geral àquela que é uma crise do capitalismo global. Essa é a questão de extrema importância, que adquire sempre mais relevância. Como disse alguém, o "um" dividiu-se em dois, isto é, a capacidade do capitalismo de unificar sociedade e desenvolvimento quebrou-se, a capacidade de o Estado fazer funcionar a lei e o consenso, a adesão à lei, também rompeu-se, assim como rompeu-se o mecanismo da representatividade, que era o canal fundamental da concretização das vontades dos povos nas instituições. É uma crise de caráter muito profundo que vai do plano político ao social, que atinge a mesma ética social, as formas-de-vida. Essa é uma questão de extrema centralidade em todo o movimento, que foi posta antes de tudo na Espanha e, devemos notar, posta na Espanha por meio de uma crítica muito forte em relação sobretudo às forças políticas da esquerda. Na Espanha, houve esse grande fenômeno alguns anos atrás -- a vitória de Zapatero --, graças exatamente à contribuição dada por forças que não se faziam presentes na luta política ordinária, que não queriam definir-se "socialistas", mas que tinham acreditado na possibilidade de uma renovação. Essa traição, a traição dessa vontade, que foi concretizando-se nas políticas do governo, é um fato de extrema importância, que dá visibilidade precisamente ao rompimento do nexo constitucional e representativo interno -- e é essa a coisa mais importante que vem acontecendo, isto é: é possível realizarmos formas de convivência democrática (mais democráticas), que vão além das constituições burguesas que conhecemos.
[Rapaz: No dia 11, o mundo inteiro vai reafirmar as suas ocupações. A gente quer fazer um calendário de atividades variadas, cultura, política, discussão de todo tipo, só que a gente precisa da participação de todos.]
Entrevistador: Em Barcelona, assim como em todos os outros lugares, pôde-se encontrar algo como um limite. Qual você acha que é o limite, ou quais são os passos seguintes que os movimentos têm, agora, de organizar e como está o limite ou o que...
Negri: Em minha opinião, esse é um limite quase inevitável neste momento. Falamos de um grande movimento em sua fase inicial, que ainda não tem fixado, evidentemente, aquelas que serão suas formas futuras. O que é importante é a atualidade, o momento daquilo que se mobiliza agora. Por exemplo, todo o movimento dos "No Global" tinha posto em questão a temática da participação, porém não havia conseguido dar uma forma específica à representação. Pense na importância que têm estes acampamentos de hoje, exatamente do ponto de vista da criação de novas formas de expressão política; e aqui, acho, temos um modelo que não é um modelo arcaico. Trata-se de um modelo completamente novo, no qual você descobre, por exemplo, o econômico, o político, o passional, o afetivo, o racional: tudo, como aconteceu exatamente para o trabalho, e começa a recombinar-se. Hoje, encontramo-nos em uma situação de revolução total do ponto de vista da produção, mas, ao largo dessa revolução produtiva, na qual os afetos, as linguagens, etc., tornam-se centrais, toda a imaterialidade do trabalho assumiu proporções enormes. Tudo isso você reencontra hoje, também, nas formas políticas, nessas novas formas políticas dos acampamentos. É uma coisa absolutamente notável, e absolutamente importante, que deve ser tomada como modelo. Antes, estávamos dizendo, como que brincando, "nem sovietes, nem pós-modernos", mas trata-se, efetivamente, de uma coisa desse tipo: é uma forma nova. Aqui, agora, temos de tentar compreender como conseguir transformar este fenômeno não em movimento político em forma de partido, mas em movimento político constitucional. Transformar as constituições, recompor o capitalismo, deslocando a capacidade de desenvolvimento para a esfera do controle do político, sob nossas vontades, a serviço da finalidade do bem-estar, do welfare, da felicidade, se quisermos colocar nesses termos.
[Rapaz: Chame no facebook, chame no MSN, chame os seus amigos, os seus parentes, vamos fazer disso aqui um mar de barracas que ninguém já tenha visto.]
Negri: Sem dúvidas, as coisas comunicam-se: temos essa crise de fundo, no qual também os novos meios de comunicação são decisivos, no sentido de que não permitem mais ao capital o domínio dos meios de produção. Houve a época em que o capitalismo fundava-se na capacidade de localizar o capital variável -- se quiser, a força de trabalho. Hoje, a força de trabalho adquiriu uma série de meios que agora fazem parte de sua bagagem. Assim, entre as causas dessa crise, temos essa nova capacidade de comunicação, capacidade que reveste um papel absolutamente fundamental para o movimento; e não somente no que concerne à comunicação como meio de troca de conceitos e saberes e assim por diante, mas, sobretudo, enquanto comunicação em movimento. Algo extremamente importante é o fato de que, se a polícia atacar, em vinte minutos, meia hora, 10 mil pessoas podem chegar para defender os acampamentos. É isso que possui caráter fundamental: existe essa mobilidade interna dos comportamentos políticos, dos comportamentos de luta, que assume um papel central. Além disso, claramente, é preciso aprofundar, estudar, e seria oportuno que aqui também fossem constituídas comissões que trabalhem sobre cada um desses temas: os modos como as pessoas se juntam, os modos como se realiza a comunicação externa com outros movimentos, aquilo que se transmite geralmente nas conversas com os outros, mas, sobretudo, esse enorme problema que se colocou para todos os movimentos em nível mundial, mas que aqui apresenta-se, talvez, de maneira mais forte: o contato entre as novas elites políticas do saber e os estudantes, os intelectuais, os pobres. Esse problema da conjunção com os pobres chega a assumir um caráter central, e aqui, justamente porque a pobreza é muito grande, porque essas sociedades têm sido rasgadas, esse problema chega a ter uma centralidade absoluta, de modo muito mais forte do que acontece na Europa -- apesar de que, na Europa, sem dúvida seja também importante, aqui, evidentemente, tem mesmo centralidade: são problemas que põem temáticas revolucionárias.
[Moça: Poder do povo/ Vai fazer um mundo novo/ Poder!/ Poder!/ Poder para o povo! (é isso aí)]
Negri: Eu não sei o que dizer, essas são coisas que vocês têm de decidir. Eu, simplesmente, estou muito convencido de que este processo irá à frente por muito tempo, seja aqui, seja na Europa, e, tomara, provavelmente, que se abra na China também.