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XXXII - Notas para a reconstrução de um mundo perdido
Ainda nas portas do país do sonho



As noções d’Alma e a constituição de um País de Sonho adequado a receber essa alma e a proporcionar à mesma uma vida diferente da vida anterior à morte são fenômenos que tiveram um início a um momento definido na evolução do homem e que foram provocados por acontecimentos não usuais e preponderantes da vida.

O acontecimento usual era o estado permanente de Fome em que se encontrava o homem no Começo e o acontecimento não-usual seria uma modificação desse estado de Fome que ter-se-ia dado no momento em que ele aparece em luta com o Semelhante, momento em que a imagem do semblante é descoberta e no qual o homem torna-se um animal gregário e adota um estado de Ódio.

Os sintomas desse estado solitário de fome são observados ainda hoje, como resíduos, no Balbuceio da criança, balbuceio este que se processa no estado permanente de fome da criança e antes da criança perceber a presença ou descobrir a imagem de seus pares e em pleno período de medo da criança[,] o que corresponde ao estado de coisas existente no período de Medo da humanidade[,] quando o homem solitário e sem contato com o semelhante balbuciava o Monólogo da Fome.

A criação dessa Alma e a constituição desse País de Sonho acarretam a formação de tendências dirigidas no sentido homossexual, tendências que eram medidas de proteção e carícias sobre a imagem do semelhante recém-descoberta.

Este momento definido na evolução do homem, representado pela interrupção e fim do Monólogo da Fome, pelo início da dinâmica articulada, pelo início do Diálogo e conseqüentemente o início da imitação e da mímica, do advento da luta, do Ódio e do homem gregário, é o momento preciso em que surgem as manifestações homossexuais do homem e os cuidados e tratos que conduzem ao narcisismo.

Os cuidados e tratos narcisistas se aplicam de especial maneira sobre o rosto que é a ponta do aparelho digestivo e que contêm a abertura adequada à ingestão de alimentos da boca.

Os cuidados e preparos aplicados sobre a ponta do aparelho digestivo é uma manifestação da importância que possui o aparelho digestivo, uma importância evoluída do seu uso e conseqüentemente da importância da sensação de fome.

As expressões do rosto, encontradas hoje na ponta do aparelho digestivo e observadas com esmero no espelho são resíduos de expressões de Fome e se encontram ligadas ao fenômeno Monólogo da Fome.

A satisfação do apetite que, pelo desdobramento ou descoberta da imagem e pelo estado de luta, marca o início do Ódio e o início do conceito de Alma é também o início do homossexualismo. A primeira forma de homossexualismo é a invenção da ideia de Alma.

O momento narcisista em que o rosto, a ponta do aparelho digestivo [e] o portador das expressões de fome, é reproduzido no espelho ou na água é um momento que marca um rumo ao homossexualismo. A contemplação e a carícia desta ponta do aparelho digestivo indica pelos gestos ritualísticos um desejo de proteção e de valorização da imagem recém-descoberta. Os desejos de ter alma são, em análise mais íntima, desejos homossexuais da supersatisfação do aparelho digestivo.

O fenômeno homossexual de desdobramento da imagem que ao surgir o Ódio conduzia à noção de Alma é uma manifestação de natureza articulada idêntica à manifestação articulada da da consoante e ao fechamento da boca do homem que produz essa consoante, portanto, uma dinâmica de Ódio e de satisfação, um espetáculo de acolhimento ao semelhante. Os sons produzidos pela ponta do aparelho digestivo, a boca, são manifestações diversas de apetite que se resumem em duas categorias gerais: o Monólogo da Fome que se processou durante o período esquizofrênico de medo e de retraimento e o Diálogo da satisfação que se processa posteriormente durante o período do Ódio. A mudança de um para o outro não somente marca o aparecimento do conceito homossexual de Alma e o desenvolvimento de todas as atividades articuladas tais como a marcha, a escrita, a linguagem articulada, o gregarismo, mas também marca o desenvolvimento da psique do homem, muito bem representada pela entidade homossexual[:] a sua Alma. É somente através deste mecanismo homossexual, um produto do fim do Monólogo da Fome, que o mundo emotivo do homem se desenvolve e alcança a sua plenitude atual. O papel representado no drama da vida pela ponta do aparelho digestivo[,] o rosto, é uma de satisfação da fome e todo o comportamento do homem, tanto durante o período solitário do Monólogo como durante o período gregário do Diálogo[,] é uma dinâmica produzida pela fome e pela satisfação do apetite.

As carícias sobre a ponta do aparelho digestivo do sexo oposto que conduzem ao beijo ou bem à união dos dois orifícios ingerentes do aparelho digestivo são[,] basicamente em virtude do local da aplicação, movimentos erógenos que visam produzir uma sensação de fome.

Todas as carícias aplicadas sobre a ponta do aparelho digestivo têm como fundamento a fome.

A primeira grande satisfação da fome nascida da dinâmica da imitação e do Ódio é a criação homossexual[,] a Alma.



Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 15 de setembro de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.