O hiperrealismo das mudanças climáticas e as várias faces do negacionismo
Déborah Danowski
Texto adaptado de palestra proferida em agosto de 2010, no II Encontro de Estudantes de Filosofia da Cidade de Goiás (UFG).
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A intrusão do tipo de transcendência que denomino Gaia faz existir no seio de nossas vidas um desconhecido maior, e que está aí para ficar. É o que, aliás, talvez seja mais difícil de conceber: não existe futuro previsível em que ela [Gaia] nos restituirá a liberdade de ignorá-la; não se trata de ‘um mau momento que vai passar’, seguido de uma forma qualquer de happy end no sentido pobre de ‘problema resolvido’. Não estamos mais autorizados a esquecê-lo. Teremos que responder sem cessar por aquilo que fazemos face a um ser implacável, surdo às nossas justificações. (Isabelle Stengers, Au temps des catastrophes: résister à la barbarie qui vient. Paris: La Découverte, 2009)
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Introdução: “Hiperobjetos” e “Intrusão de Gaia”
As mudanças climáticas se incluem na classe desses objetos especiais que Timothy Morton chamou recentemente de “hiperobjetos” (em The Ecological Thought. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2010). Hiperobjetos são um tipo relativamente novo de objetos que, segundo Morton, desafiam a percepção que temos (ou que o senso comum tem) do tempo e do espaço, porque estão distribuídos de tal maneira pelo globo terrestre que não podem ser apreendidos diretamente por nós, ou então que duram ou produzem efeitos cuja duração extravasa enormemente a escala da vida humana conhecida.
Um exemplo de hiperobjetos são os materiais radioativos. O plutônio 239, por exemplo, tem uma meia-vida de 24.100 anos, de modo que sua utilização no presente pode ter efeitos que duram mais do que já durou qualquer evento de que tenhamos notícia na história humana escrita. Um segundo exemplo é o aquecimento global e as mudanças climáticas que dele se seguirão em maior ou menor grau, podendo durar milênios até que sejam restabelecidas as condições climáticas que hoje conhecemos – só que então talvez não estejamos mais aqui para testemunhar esse restabelecimento.
A guerra atômica também pode ser dita um hiperobjeto. Há uns dois anos, ao ler pela primeira vez o manifesto sobre a bomba atômica escrito por Russell, Einstein e outros em 1955, fiquei enormemente surpresa ao pensar em como ele ainda é atual, em virtude de uma série de relações que se podem estabelecer entre a ameaça atômica e a ameaça representada pelo aquecimento global.
Como sabemos, o manifesto foi uma tentativa de alertar o mundo acerca dos perigos de uma guerra atômica: pela primeira vez, a espécie humana dispunha dos meios tecnológicos de destruir a si mesma. E o que se pedia ali não era pouco: que se pusessem em segundo plano disputas políticas e ideológicas, diferenças de raça e de nacionalidade, que se abrisse mão até mesmo da soberania nacional, se fosse preciso, em nome do fim das guerras, uma vez que uma guerra mundial com o uso generalizado de armas atômicas só poderia ter um desfecho: o fim da espécie. Um dos grandes obstáculos para que as pessoas se conscientizem disso, continuava o texto, é que “humanidade” ou “espécie humana” parece algo vago e abstrato demais, e é preciso que se entenda que o perigo é, ao contrário, muito preciso e concreto: a ameaça é às pessoas mesmas, a seus filhos e netos.
Há muitas semelhanças, mas muitas diferenças também, entre o que estava exposto no manifesto de Russell/Einstein e os discursos ambientalistas e/ou científicos acerca do aquecimento global e das catástrofes que podem se seguir a ele. Uma diferença importante é que, no manifesto de 1955, simplesmente não se falava em natureza, nem em outras formas de vida além da humana – exceto por uma alusão aos peixes apanhados pelos pescadores japoneses após o ataque nuclear sobre Hiroshima, que estavam contaminados, como, aliás, os pescadores. Hoje, ao se falar em crise ambiental, não se pode deixar de lado o fato de que, sem as outras formas de vida, a espécie humana sequer existiria; que tudo está ligado, como diria Leibniz repetindo Hipócrates.; e que a extinção em massa de outras espécies muito provavelmente significaria, por si só, a extinção da nossa.
Outra diferença entre a ameaça nuclear e a ambiental é que o medo de uma guerra atômica era o medo de uma possibilidade – ainda que na época a guerra parecesse, e talvez até fosse mesmo, mais do que uma simples possibilidade, e em muitos momentos da história tenha chegado a ser bastante provável. De qualquer forma, embora as armas atômicas já estivessem então onde continuam a estar hoje, sempre foi e ainda é perfeitamente possível que elas jamais sejam usadas numa guerra. Por outro lado, caso isso aconteça, a catástrofe se seguirá muito rapidamente, de uma só vez. Se acontecer, ninguém terá nenhuma dúvida sobre o que estará acontecendo.
O aquecimento global, em troca, já não é mais apenas uma possibilidade, é uma realidade. Segundo alguns estudos, mesmo que hoje o mundo parasse completamente de produzir gases de efeito estufa, a temperatura da Terra iria subir mais de 2 graus Celsius até o próximo século em comparação com a temperatura média da época da Revolução Industrial, só como consequência do CO2 e outros gases de efeito estufa que já estão circulando na atmosfera e nos oceanos. Por outro lado, os efeitos desse aumento sobre o clima serão bem mais lentos que os das bombas atômicas, serão esparsos e aparentemente desconectados uns dos outros. Isso, pelo menos, antes de os biomas atingirem seus chamados “tipping points”, ou pontos de não retorno, em que certas alterações retroalimentam outras, gerando efeitos não lineares em grande escala e comportamentos “catastróficos”, no sentido matemático do termo.
Temos visto nos últimos anos cada vez mais eventos climáticos extremos, e no Brasil não faltam exemplos desse tipo. As chuvas torrenciais que caíram sobre a região serrana do Rio de Janeiro em janeiro de 2011 foram bem reais, mas não é assim tão evidente que se possa relacionar esse fato, aparentemente isolado, às mudanças climáticas devidas ao aquecimento global. As evidências vão se acumulando lentamente, e em relação a cada uma delas, considerada separadamente, sempre é possível se perguntar se ela se deve ou não ao aumento da temperatura média da Terra. Os ciclones extra-tropicais no sul do Brasil foram um evento climático tão inusitado que demorou para receber o nome apropriado: furacão, de categoria 1. A região amazônica teve em um intervalo de cinco anos (em 2005 e em 2010) duas secas extremas que só deveriam acontecer uma vez a cada século. Ondas de calor, chuvas, cheias e secas têm se sucedido de maneira cada vez mais frequente, deixando em situação de risco um número crescente de pessoas. Nada disso, entretanto, é suficiente para tornar concreto, objetivo, ou objetificável, o fato do aquecimento global. Quantos eventos extremos, quantas populações serão obrigadas e deixar suas terras e seus países, antes que finalmente se diga: “pronto: as mudanças climáticas já estão aqui”? Ao que tudo indica, elas só serão apreendidas como reais (exceto, é claro, pelos cientistas que fazem as medições e alguns cidadãos mais atentos) bem depois de já se terem instalado. É isso um hiperobjeto.
E essa maneira “hiperobjetiva” como se apresentam a nós as mudanças climáticas explica, ao menos em parte, a situação bizarra que envolve as discussões acerca desse fenômeno planetário, isso que Isabelle Stengers chamou de “a intrusão de Gaia” em nossas histórias e nossas vidas, um acontecimento de tal radicalidade e magnitude que não poderemos nos dar ao luxo de desconsiderar.
Negacionismos
Por exemplo: podemos dizer com segurança que não há mais controvérsia científica sobre o aquecimento da Terra. A menos que queiramos desafiar todo o trabalho já realizado até hoje pelos climatologistas e outros estudiosos (e isso fica cada vez mais difícil, como estamos vendo), não há mais razão, científicamente falando, para nos perguntarmos se as mudanças climáticas são reais ou não, se são antropogênicas ou não, nem se as suas consequências são ou serão graves ou não. Isso tudo já está estabelecido, e é aceito quase com unanimidade pela comunidade científica.[1] O que ainda se discute é a dimensão do fenômeno, a velocidade do aumento de temperatura, o índice do derretimento das geleiras e da elevação do nível do mar, a maneira pela qual o aquecimento global vai agravar a acidificação dos oceanos, como exatamente o novo regime de chuvas e secas vai se distribuir pelo planeta, como a biodiversidade vai ser afetada dependendo do grau de aumento, como a agricultura e a produção de alimentos vão sofrer, quais as consequências sociais e políticas que advirão etc. Tudo isso, ademais, deve ser estimado em função do maior ou menor sucesso na diminuição das taxas dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera, da rapidez ou lentidão dessa diminuição. Isso estava já expresso nos últimos relatórios do IPCC sob a forma das 6 famílias de “cenários”, dos mais otimistas ao mais pessimistas.[2]
Discute-se também a catástrofe em si (o termo “colapsonomia”, por exemplo, tem sido associado a um número cada vez maior de propostas e abordagens sobre as crises ambiental, econômica e civilizacional), discutem-se as “saídas” para a catástrofe – ou melhor, se há saída e onde ela estaria; quais as melhores formas de mitigar as mudanças climáticas (“mitigar”, e não “evitar”, o que seria impossível uma vez que elas já estão em curso), e também as formas de adaptação a elas. Qual o “Plano B”, em que entraria em cena a geoengenharia, se ele deve ser testado, e com que antecedência; quem teria o direito de implementá-lo ou de decidir sobre a forma dessa implementação? Discutem-se problemas de segurança nacional, de controle sobre os recursos hídricos e muitos outros. Discute-se o que se quer e o que não se quer, que novas éticas devem valer de agora em diante, o que deve prevalecer: nós ou nossos descendentes, a espécie humana ou os seres vivos e a natureza de maneira geral?
E no entanto, basta abrir os jornais ou ligar a TV para perceber o grau de esquizofrenia que acomete hoje nossa sociedade, e como esse consenso científico estranhamente não gerou um consenso da opinião, ou ao menos não gerou uma consciência da real gravidade da situação que estamos vivendo. Enquanto os cientistas (inclusive pesquisadores brasileiros de instituições com alta legitimidade científica) falam em um aumento de 4 a 6 º C na temperatura do planeta até o fim deste século[3], aqui “embaixo”, por trás da enxurrada de campanhas publicitárias das empresas que cada vez mais usam e abusam da maquiagem verde, limitamo-nos a discutir reciclagem de lixo e outras medidas proporcionalmente insignificantes, e o governo se empenha em destruir, pouco a pouco, a legislação ambiental construída a duras penas ao longo de décadas, difamando os ambientalistas como “ecochatos” e acusando-os de querer atrasar o desenvolvimento do país em nome de suas fantasias de mundos impossíveis. Boa parte da esquerda ainda considera a preocupação com o meio-ambiente um luxo tipicamente burguês, ou se vê obrigada, muito a contragosto vale dizer, a “domesticar” a questão ambiental de modo a fazê-la caber dentro de seus esquemas cosmológicos clássicos, de conteúdo fortemente antropocêntrico e messiânico.
Para sermos justos, não são muitos os que por aqui se atrevem a negar abertamente a realidade do aquecimento global ou sua origem na ação humana. Mas eles existem, e vão desde alguns cientistas raivosos – em geral de especialidades não diretamente relacionadas com o problema em causa – até vários representantes da bancada ruralista no Congresso Nacional. Reconheço que nossa situação sob esse aspecto é bem melhor do que a dos EUA, por exemplo, onde percebe-se cada vez mais uma identificação da posição republicana com o negacionismo climático, e onde há projetos de lei que propõem a abordagem nas escolas do tema das mudanças climáticas como uma mera controvérsia, semelhante àquela que oporia a teoria da evolução ao criacionismo. Não sei se chegaremos lá também; não duvido de nada. Mas o que predomina entre nós, de longe, são discursos sempre otimistas, que buscam diminuir a gravidade da crise e jogar para o segundo plano a preocupação com o meio-ambiente, como se não estivessem em jogo as próprias condições de nossa existência (assim como da existência da maior parte das outras espécies do planeta).
Há vários tipos de negacionistas e negacionismos: há os por assim dizer independentes e há os que, por baixo do pano, são pagos por grandes corporações, pelas companhias de carvão, petróleo e gás para produzir artigos de jornal baseados em falsas pesquisas científicas.[4] Mas há ainda um outro tipo de gente que, por motivos diferentes, ou “não aceita” a realidade das mudanças climáticas, ou aceita, mas “não tanto assim”. São pessoas até bem esclarecidas, que dizem frases como: “ah, nisso eu não posso acreditar”, “isso também não, aí já é demais”, “isso aí já é catastrofismo”... “Catastrofismo não”.
Uma razão por que se nega o inegável (exceto pelas razões que acabamos de ver no caso americano e em muitos outros) é que isso que é inegável é também intolerável. Se fôssemos encarar diretamente o que temos pela frente, isso exigiria de nós, aqui e agora, muito mais do que estamos realmente dispostos a fazer.
Tecnologia X incivilização
Mas supondo que tenhamos coragem de encarar de frente a questão de quanto realmente temos que mudar (por exemplo, diminuir muito rapidamente em aproximadamente 90% a emissão dos gases de efeito estufa), a pergunta que vem em seguida, e que na verdade fundamenta aquela, é: mudar o quê e para quê? Pode parecer claro: mudar nosso modo de vida insustentável, para evitar o colapso. Mas colapso de quê? Do clima, dos ecossistemas, da vida no planeta? Essa é uma das respostas possíveis, mas, quase sempre (exceto no caso de algumas correntes ecocêntricas), ela vem complementada por uma referência privilegiada à espécie humana – e, dentro desta, àquela que parece ser a única alternativa de vida digna de humanos, que é a nossa civilização. Assim, a expressão “salvar o planeta” quase sempre quer dizer, 1º, salvar a vida humana no planeta, e, 2º, salvar nossa forma de civilização – ocidental, democrática, capitalista, neoliberal, tecnológica e tecnofílica. A civilização do consumo, em suma, se possível (quando o enunciador está mais à esquerda) expandida suficientemente para promover a inclusão nela de todos os homens, e a erradicação total da pobreza. Um mundo de classe média, para generalizarmos a fantasia de nossa presidente.
Quer dizer, a ideia é “salvar” o que nunca tivemos, aquilo que o capitalismo sempre prometeu mas só deu para uma pequena parte da população mundial. A ideia de salvação, assim, ganha um duplo sentido: conservar o que temos (ou manter para os mais abastados a vida que eles já têm, em maior ou menor grau) e ao mesmo tempo redimir a humanidade de seus pecados. Isso é no mínimo muito estranho, e, aliás, simplesmente não é possível. Uma expansão ou um crescimento econômico ilimitado vem se mostrando, cada vez mais, um ideal não apenas utópico, mas paradoxal, o que fica evidente uma vez que entendemos que os recursos naturais que sustentariam esse crescimento, sendo a fonte última de qualquer tecnologia, são limitados, e que, além disso, também é limitada a capacidade que tem o planeta de processar os resíduos da atividade industrial. Essa ideia das limitações termodinâmicas, ou biofísicas, para o crescimento econômico foi proposta pela primeira vez em 1971, pelo economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen em seu livro A Lei da Entropia e o Processo Econômico. Ela foi desprezada ou permaneceu simplesmente ignorada até bem recentemente, quando foi “redescoberta” e resgatada. Hoje começa a parecer óbvia como o ovo de Colombo. Não é mais possível esconder-se atrás do rótulo demonizador de “neomalthusianismo” para evitar encarar de frente a constatação de que há limites extra-econômicos ao crescimento econômico.
Dessa forma, a ideia de salvação ou resgate de nossa cultura e civilização pode esconder uma outra forma de negacionismo, presente em todos aqueles que, aceitando a realidade e a gravidade das mudanças climáticas, entretanto não veem para ela solução possível fora de um aprimoramento, uma correção, um aperfeiçoamento por assim dizer “verde” ou “ecológico” da sociedade (cristã-capitalista) e do modo de vida (tecno-industrial) que criaram esse monstruoso problema. Não apenas não queremos abrir mão dos avanços tecnológicos, das facilidades, segurança, conforto trazidos pela tecnologia (apesar de todos os seus problemas – que, como sabemos bem, não são poucos), como temos a plena convicção de que, sem estes, instaurar-se-ia necessariamente o caos absoluto, uma espécie de guerra hobbesiana de todos contra todos.
É de certa forma essa a questão que esteve por trás de um interessante debate entre o ativista político e jornalista do jornal inglês The Guardian especializado em mudanças climáticas, George Monbiot, e um amigo seu, o escritor, ex-ativista político e ecologista, Paul Kingsnorth[5], debate que foi publicado no próprio blog de Monbiot.[6]
O debate se resume mais ou menos no seguinte: Kingsnorth considera que a posição de Monbiot e da maior parte dos ecologistas atuais diante da crise ambiental é na verdade uma “fuga”, sintoma do total empobrecimento atual do discurso ecológico, mesmo de esquerda, e reflexo de uma incapacidade de encarar o que está na nossa frente, que é o fim inevitável da nossa civilização: “a civilização de que fazemos parte está rapidamente atingindo seu limite, e […] é tarde demais” para deter o colapso. Nós todos (ele inclusive, e também os movimentos ambientalistas) ainda acreditamos num progresso tal como definido pelo liberalismo, i.e. “num futuro que seja uma versão melhorada do presente.” Poderemos continuar a viver mais ou menos as mesmas vidas confortáveis se conseguirmos adotar suficientemente rápido um modo de vida sustentável. Isso, segundo Kingsnorth, também é uma forma de negacionismo.
Toda a nossa civilização foi construída sobre o mito da excepcionalidade humana, sobre uma crença cega no progresso tecnológico e material dependente de fontes de energia altamente destrutivas, um apetite infindável de diversas ordens, um sistema econômico que requer um crescimento contínuo, e que portanto só pode ser freado se entrar em total colapso. E ninguém quer de fato mudar isso. “O que realmente estamos querendo salvar não é o planeta, mas nosso vínculo com a cultura material ocidental sem a qual não imaginamos poder viver.” O verdadeiro desafio portanto, segundo Kingsnorth, é pensar como vamos sobreviver ao declínio e o que aprenderemos com o colapso da civilização. Ou melhor, eu diria, o verdadeiro desafio seria pensar de que maneira queremos declinar.
Em resposta a Kingsnorth, Monbiot, que confessa sentir-se de fato cada vez mais pessimista no que concerne às chances de se evitar o desastre, afirma entretanto ter dúvidas se o colapso da nossa civilização pode trazer algum bem. Monbiot diz detectar em Kingsnorth quase um desejo pelo apocalipse, como “um fogo depurador que livrará o mundo de uma sociedade doente”. Mas as consequências de um colapso seriam terríveis: fome em massa, guerras, morte de bilhões de pessoas. Isso sem falar que os homens levarão consigo uma quantidade assombrosa de espécies vivas. E de qualquer forma, segundo Monbiot, “o que provavelmente viria do lado de lá da civilização é bem pior que nossa situação atual”. “Quando a civilização colapsa”, diz ele, “os psicopatas tomam o controle”. Para Monbiot, é Kingsnorth o negacionista, porque imagina que algo de bom pode resultar do fracasso involuntário da civilização industrial. A resposta à pergunta de Kingsnorth (o que aprenderemos com esse colapso?) é, segundo Monbiot: nada. Não aprenderemos nada.
É possível avaliar o desespero de George Monbiot ao se constatar sua recente adesão à tecnologia nuclear como único meio disponível atualmente para evitarmos um aquecimento global catastrófico – ele, que era até há bem pouco tempo atrás um opositor ferrenho dessa tecnologia.
Conclusão: o círculo infernal
Há dois pontos importantes nessa discussão, que, para terminar, gostaria de elaborar um pouco mais.
O primeiro é a questão, já há pouco mencionada, de saber se nossa única saída é aperfeiçoar o que temos, ou, ao contrário, se é possível – isto é, se não seria “o fim do mundo”, no sentido coloquial da expressão – pensar uma outra forma de viver, fora desse modelo (para simplificar) patriarcal, produtivista, neoliberal e corporativo de sociedade que é a nossa. A rigor, não é de possibilidades ou escolhas que fala Kingsnorth; ele diz que, queiramos ou não, esse modelo está ruindo a olhos vistos, que não há como impedir isso, mas que seu fim não é o fim de tudo, nem leva necessariamente ao caos.[7] Kingsnorth pretende se opor assim ao que chama de visão bipolar do mundo, implícita ou explicitamente assumida por pessoas como Monbiot: ou tornamos nossa civilização “sustentável”, ou teremos uma catástrofe de proporções bíblicas; ou optamos, como modelo de futuro, pela “democracia capitalista liberal 2.0” (i.e. o mundo em que vivemos hoje, só que com os combustíveis fósseis substituídos por placas solares, turbinas eólicas etc, “governos e corporações controlados por cidadãos ativos e o crescimento dando lugar a uma economia sustentável”), ou nosso futuro será como o mundo retratado por Cormac McCarthy no livro The Road, “o mundo macabro do pós-apocalipse, em que tudo está morto exceto os humanos”, reduzidos em boa parte ao canibalismo.
Não deixa de ser uma transformação dessa visão que Kingsnorth chama de bipolar a tese defendida por dois economistas californianos, T. Nordhaus e M. Schellenberger, em seu livro Breakthrough: From the Death of Environmentalism to the Politics of Possibility (2007)[8], a saber, a de que nossa única saída é o progresso tecnológico. Nordhaus e Schellenberger dirigem o Instituto Breakthrough, que tem atuado como um thinktank pseudoambientalista da direita neoliberal norteamerica. Como solução para a crise ambiental, defendem que um aumento do investimento estatal em inovação tecnológica – não apenas energia eólica e solar, mas energia nuclear e extração de shale gas por fraturamento hidráulico – seria suficiente para baixar o preço dessas fontes de energia, e assim induzir o mercado a optar naturalmente por elas (que, na visão dois autores, são fontes não poluentes) em lugar de petróleo e carvão. Defendem também a opção pelo uso na agricultura de sementes transgênicas e seus agrotóxicos associados. São em suma tecnólifos orgulhosos e triunfalistas. Aos críticos que os lembram de todos os efeitos perversos que esse modelo tem acarretado, os autores respondem que ele não tem nada de essencialmente errado ou “pecaminoso”, por assim dizer, mas que jamais significou que um dia estaríamos livres de problemas; ao contrário, não há tecnologia pura, perfeita; os erros e deficiências são parte essencial do processo de tecnologização, e seu aperfeiçoamento é, portanto, uma tarefa sem fim, que deve ser levada a cabo por uma modernização desse processo – “modernizar a modernização”, como diz Bruno Latour em sua leitura otimista da proposta de Nordhaus e Shellenberger.[9] Uma modernização que finalmente leve em conta a inseparabilidade entre o sonho de emancipação (Latour) ou de liberação (N&S) do homem pela técnica e seu attachment, sua appartenance, sua pertença ou vínculo indissociável com a natureza, o ambiente e os não-humanos. Em outras palavras (ainda segundo a descrição que Latour faz do livro), temos que prestar atenção e nos responsabilizar por aquilo que criamos; não podemos, diante do enorme problema do aquecimento global[10] e do esgotamento dos recursos naturais, dos solos, dos mares etc, criados em boa parte por algumas de nossas tecnologias, simplesmente abandonar o barco. O grande pecado da nossa civilização não seria a tecnologia, mas, ao contrário, o abandono dessa tecnologia no meio do caminho, em nome por exemplo da valorização de uma espécie de volta às origens, aquilo que vem sendo chamado de irracionalismo ou primitivismo, e que pregaria nossa separação de vez da cultura, nossa volta a uma pura natureza. A visão bipolar assume aqui, portanto, a forma: ou o progresso tecnológico indefinido (condição essencial da liberdade humana – estamos no interior da teo-antropologia cristã), ou o primitivismo e o irracionalismo.
Do ponto de vista digamos assim prático, parte dos argumentos de Nordhaus e Schellenberger se funda no pressuposto, no mínimo bastante questionável, de que os ganhos ou melhorias (mesmo parciais) trazidos pelas tecnologias são sempre maiores que as perdas ou problemas que elas acarretam, as quais são apenas efeitos colaterais indesejáveis, que serão corrigidos por tecnologias ainda melhores, de preferência “verdes” (esse seria o “truque” que nos salvaria, ou seja, as tecnologias agora têm que ser cada vez mais verdes, sustentáveis – ou ao menos o que os autores consideram verdes e sustentáveis). Mesmo essas novas tecnologias trarão outros problemas, é claro, porém menores, e estes serão novamente corrigidos e assim por diante. Por exemplo, os pesticidas permitem lavouras mais produtivas, e, embora possam gerar efeitos indesejáveis como envenenamento dos cursos d’água etc, não devem ser simplesmente abandonados, pois isso nos deixaria como única opção a fome em massa, e sim substituídos por pesticidas melhores. Nunca se diz que quem lucra com esse tipo de tecnologia e quem sofre seus efeitos indesejáveis são sujeitos distintos.
Juntamente com a defesa intransigente da tecnologia, os autores sustentam o lema “big is beautiful”, que (num capítulo intitulado nada menos que “Greatness”) tentam fundamentar no conceito nietzscheano de afirmação da existência: para eles, o movimento em favor do decrescimento, da redução, da aceitação dos limites naturais (para não dizer físicos) é sintoma de niilismo e má-consciência, expressão de forças reativas que querem negar a existência e a vida de abundância que é nosso destino. O problema dos ambientalistas, segundo Nordhaus e Schellenberger, é “falta de imaginação”[11]: deveriam ter imaginado que a solução para o aquecimento global reside na liberação, e não na restrição, da atividade humana e do desenvolvimento econômico. Ou seja, ao invés de reduzir, devemos crescer ainda mais, produzir, inovar sempre, promover a abundância, para finalmente incluir nessa abundância os que agora dela estão desprovidos – por aqui nós diríamos: aumentar o bolo para então dividi-lo.
Um dos graves problemas dessa visão, na minha opinião, além do uso absolutamente deturpado e perverso dos conceitos nietzscheanos (e outros), é que ela parece já pressupor que fora desse modelo que um dia escolhemos (ou, se preferirmos, que alguns escolheram) não há saída, o que no fundo significa que esse seria, afinal, não apenas o melhor modelo, mas a única alternativa ao caos, ao obscurantismo, à própria negação de nossa essência e nosso destino enquanto humanos. Além disso, embora os problemas ambientais e sociais muitas vezes sejam mesmo, como dizem Schellenberger e Nordhaus, “consequências não intencionais” da tecnologia, eles certamente são essenciais à dinâmica capitalista do desenvolvimento e do crescimento, que os autores (não por acaso) não mencionam, mas da qual aquela tornou-se inseparável.
Se tivermos que acreditar que o grande “pecado” (para continuar com esse vocabulário moralizante) da nossa civilização seria, não o fato de ter feito o que fizemos, mas reconhecer que erramos e querer mudar radicalmente de direção, não insistir num sistema que vive e sempre viveu às custas da exclusão e miséria de um número enorme e crescente de pessoas e às custas do esgotamento das condições de vida no planeta, mas sim, justamente, desistir desse modelo, mudar de ideia, combatê-lo, encontrar uma saída, pensar, pensar outra coisa (porque, afinal, pensar de verdade é sempre pensar outra coisa, é portanto criar – como diria Gilles Deleuze – e não apenas realizar um destino); se tivermos que acreditar, enfim, que só há “salvação” na manutenção, ampliação e correção daquilo que um dia (e nem faz tanto tempo assim, afinal) acreditamos que realizava a nossa essência e excelência, então nosso grande sonho de salvação não será mais que um pequeno círculo infernal, que em breve será, aliás, desfeito pela própria realidade.
Termino com mais uma frase de I. Stengers:
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Que não me perguntem que ‘outro mundo’ será possível... A resposta não nos pertence, pois pertence a um processo de criação, cuja enorme dificuldade seria talvez insensato e perigoso subestimar, mas que seria suicídio considerar impossível.
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[1] Mais especificamente, o consenso é admitido por 97% dos climatologistas hoje em atividade. Diversas associações científicas no mundo todo endossam essa posição, além das Academias de Ciência de 19 países, entre eles o Brasil. Ver http://www.skepticalscience.com/global-warming-scientific-consensus.htm. [Voltar ao texto]
[2] Ver, por exemplo, o Quadro 3 (p. 30 da tradução para o português) do Sumário para Formuladores de Políticas do Grupo de Trabalho II do 4º Relatório do IPCC. [Voltar ao texto]
[3] O INPE e o CPTEC, por exemplo, lançaram em 2007 um Atlas de Cenários Climáticos Futuros para o Brasil, com projeções climáticas para a segunda metade do século, em que a Amazônia aparece em diversas projeções com 6º C de aumento até 2100. [Voltar ao texto]
[4] Na verdade, existe uma história macabra por trás da aparente neutralidade reivindicada pelos negacionistas, que reclamam por exemplo o direito de não acreditar nas mudanças climáticas, de não acreditar no que dizem os cientistas do IPCC. Naomi Oreskes, da Universidade da California em San Diego, fez sobre isso uma longa pesquisa, que foi publicada em um livro escrito junto com Erik Conway (Merchants of Doubt: How a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming, 2010 Nova York: Bloomsbury Press), em que ambos expõem uma espécie de genealogia do negacionismo americano. [Voltar ao texto]
[5] Criador, junto com Dougald Hine, de um projeto chamado Dark Mountain Project. [Voltar ao texto]
[6] Ver http://www.monbiot.com/2009/08/18/should-we-seek-to-save-industrial-civilisation. [Voltar ao texto]
[7] Por isso mesmo sua posição não tem nada de passivista. Juntamente com outros colaboradores do Dark Mountain Project, Kingsnorth tem se aproximado de movimentos que apontam para direções alternativas ao capitalismo, indo desde as cidades de transição até experimentos de universidades livres. [Voltar ao texto]
[8] O livro mudou de subtítulo em sua segunda edição, passando a se chamar: Break Through: Why We Can't Leave Saving the Planet to Environmentalists. [Voltar ao texto]
[9] Latour retoma uma expressão de Ulrich Beck. Latour, B. (inédito). “’It’s development, stupid!’ or: How to modernize modernization.” In J. Proctor (Ed.), Postenvironmentalism. MIT Press: Massachussets. [Voltar ao texto]
[10] É Latour quem diz que este é um problema enorme; aparentemente não é a opinião dos dois autores. Cf. draft preparado para o San Giorgio Dialogues (inédito). [Voltar ao texto]
[11] Os ambientalistas estamos pelo visto encurralados entre acusações de falta de imaginação e de excesso de imaginação ou de gosto pela fantasia. [Voltar ao texto]

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