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X - OS GATOS DE ROMA
A mentira e o Soluço do Mundo – A Dança Nasceu na Floresta

A importante e sensacional Descida da Árvore pelo nosso antepassado, criando um tipo novo e um temperamento e pelo seu contato com o solo estabelecendo raízes afetivas com a Terra tão fortes e tão preponderantes quanto as raízes da árvore, havia dado no novo habitante da superfície pendores especiais baseados no Medo.

Ao pé da árvore abandonada se estendia a imensa floresta que se apresentava misteriosa na sua semi-claridade e enigmática no seu conteúdo aparentemente sem fim; o antepassado do homem sobre a terra firme estranhava a ausência do balanço do galho que não mais o equilibrava, contudo as oscilações radiais com percurso circular do galho em balanço haviam se estereotipado e indicariam ao novo habitante o seu caminho na vida.

O movimento circular imposto pelo galho da árvore funcionaria como uma defesa do habitante no começo sobre a terra firme e como tal, estabeleceria uma ligação sentimental definitiva entre o homem e a árvore.

O movimento circular foi o primeiro movimento do antepassado que abandonara a árvore e é o mesmo movimento circular da dança.

A dança nasceu na floresta e os primeiros movimentos do antepassado são movimentos de dança. É o mesmo movimento circular da fera enjaulada de hoje, este também se originou na floresta onde as árvores funcionavam como um protótipo das barras da jaula futura. O antepassado que descia da árvore não avançaria imediatamente em marcha reta mas espreitaria circularmente, herdando os ensinamentos do galho da árvore e, por estes, estabelecendo o Medo que experimentava frente ao mundo novo da terra firme tão diferente do mundo oscilatório do galho.

O medo torna-se uma função dos movimentos circulares estereotipados pela vida desenvolvida sobre o galho da árvore.

Este medo oriundo do galho só seria vencido por movimentos rítmicos de origem vegetativa, movimentos que arrancariam o antepassado da repetição circular <in loco> concedendo-lhe novo rumo e o Soluço se apresenta como a primeira indicação do brilho de uma nova vida, como o primeiro canto de uma Tristeza. O soluço lacrimejante enterrava um passado e abria um novo horizonte; a exibição da Tristeza. O Soluço era uma manifestação rítmica provocada pelo medo da escuridão da floresta, e proveniente de movimentos vegetativos antigos, era um movimento selecionado pelo pânico do medo e que aparece em defesa do indivíduo.

O som sem articulação interrompido e repetido é a primeira forma de som e tem o Soluço como gênese da Grande Tristeza. A manifestação sonora monotonal torna-se um gaguejo e uma Mentira genética; um desejo de dizer qualquer coisa que é verdade e que se encontra encoberta pelo gaguejo como manifestação da mentira. O Soluço é o primeiro gaguejo e a primeira Simulação.

A marcha ou melhor, a dança em forma de marcha, cujo recuo é uma hesitação proveniente do medo é uma forma mais adiantada de movimento e ter-se-ia originado após o movimento circular possivelmente nas margens da floresta e seria conseqüência do soluço; a cadência do Soluço teria fornecido a cadência da marcha.

As danças que nasceram na floresta e na Tristeza dariam mais tarde ao mundo alegria e os desejos básicos do homem.

Tanto a marcha como os importantes movimentos do Samba nasceram do Grande Soluço do Mundo.

O Soluço é a primeira mentira e o mundo da mentira é o primeiro a existir. Do homem soluçando e lacrimejante na floresta brotam todos os caminhos do seu Destino. A simulação dramática nascida e aperfeiçoada nas condições técnicas da floresta surgia em defesa do primeiro homem para camuflar as suas deficiências físicas e estéticas. Ainda hoje encontramos sobrevivências dessa grande mentira na floresta, entre seres primitivos, entre os animais, as crianças e os homens psiquicamente atrasados. Estes, quando desejam alcançar uma ambição, simulam uma lesão grave, a morte, a loucura, o infantilismo.

O mamífero, a criança, o primitivo, o atrasado idiota praticam a Simulação pelo movimento circular, pela dança, pelos saltos e tamborinagem pela verbigeração ou repetição automática monotonal de sons, sílabas ou seqüências de palavras. Quando relacionado ao seu estado atual, o homem no começo é impuro, imperfeito, feio, triste e doente. Constitui grave erro a Pureza do Primitivo pregada por escritores de renome, como por exemplo, Rousseau e podemos chamar esse erro de Lirismo Dialético.

Só posteriormente ao abandono da floresta, ele sai da penumbra rumo ao campo aberto e da luz e torna-se um escalador de montanhas desnudadas e rochas escarpes. O tom da montanha não é o Soluço, mas sim o lamento nostálgico prolongado. Ele só começa a adquirir Alegria quando penetra na luz do campo aberto. O estado de vigia só começa a se diferenciar do estado de sonho quando o homem inicia a sua saída da floresta. O abandono da floresta traz a formação de um novo temperamento mesmo como o abandono do galho da árvore havia trazido o primeiro temperamento junto à terra.


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 10 de março de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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A simulação, a Floresta e o Primeiro Temperamento – A Descida da Árvore



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.