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XI - OS GATOS DE ROMA
O Bailado do Silêncio

Muito antes de saber andar, o antepassado do homem bailava na floresta acompanhado pelo Soluço que também é um produto da floresta. Era o espetáculo do primeiro som produzindo o primeiro ritmo, rompendo a proto-dança de movimentos circulares “in loco”, e esta dança circular teria sido um Bailado do Silêncio, o bailado da fera enjaulada. A repetição monotonal do Soluço, coisa de origem vegetativa, aparecia como uma manifestação salvadora de um perigo que, pela sua insistência, sugestionava o antepassado do homem, hipnotizando-o e apontando para a realização de uma marcha direcional embora com recuos hesitativos.

A floresta com a sua sutil semi-claridade e pontos de luz concentrada, era um ambiente apropriado para hipnotizar seres primitivos, facilmente hipnotizáveis, mesmo como havia sido o ambiente apropriado para criar o berço do Sonho e da Mentira e como havia sido o grande cenário da Simulação e da Timidez e do maravilhoso e conseqüente gaguejo que surge como primeira defesa sonora do homem. O gaguejo esconde a timidez e se compensa com a Simulação e é uma manifestação da mentira com finalidade de defesa. A floresta, apropriada ao teatro da Simulação, à hipnose, ao sonho e à mentira, teria gerado o primeiro Medo, não como coisa hipnótica e histérica, como somos tentados a acreditar, mas sim como apenas uma forma de movimento circular de espreita, oriundo do movimento do galho.

Este hipnotismo seria um auto-hipnotismo provocado pela natureza íntima do Gênio da Espécie ou das Forças Fundamentais da História. No momento de haver necessidade que alguma coisa aconteça, a fim de salvar o antepassado em perigo, dentro do Bailado do Silêncio, surge o mecanismo mais antigo, o mecanismo vegetativo proveniente de uma camada filogênica perdida nas profundezas da evolução a fim de dar ao antepassado uma chance de sobreviver. Surge o Soluço. Romper o Bailado do Silêncio era tão importante para o futuro do homem quanto havia sido a Descida da Árvore.

O antepassado, em estado crepuscular, exibia a sua dignidade de imbecil e o seu atraso mental em circunvoluções estereotipadas, trágicas pelo seu silêncio e angustiosas pela ausência de destino e pelo caráter local, sem futuro. Era uma atitude que continha toda a burrice do nacionalismo.

Podemos visualizar um momento de transição no qual o antepassado chorava, soluçando com derrame de lágrimas, e esperneava como uma criança para sair do movimento circular que o prendia, magicamente, antes de penetrar no soluço rítmico e na marcha. O Bailado do Silêncio só poderia ter sido executado antes do advento do Soluço e antes do homem se tornar lacrimejante. Parece que o Soluço está ligado ao derrame de lágrimas e esta ligação se processa em virtude de ser o Soluço uma simulação para a defesa, uma máscara que encobre uma timidez e, em tese, o derramamento de lágrimas tem como finalidade antiga conservar limpo o globo ocular durante a uma fase de luta e desespero, também para fins de defesa.

Podemos sugerir um “test” para verificar a veracidade das teorias expostas e que consistiria em tratar casos crônicos de soluço com o exercício intensivo de valsas vienenses. O abuso da valsa vienense funciona como uma reversão forçada a um passado mais antigo e, dessa maneira, repete a cronologia do fato do movimento circular se encontrar antes do movimento da marcha e de percussão. A repetição monotonal, além de ser uma simulação para encobrir uma timidez e uma fraqueza, funciona também como uma súplica. Praticamente, é a primeira máscara adotada pelo homem para que ele possa enfrentar o mundo; é a primeira sensação de inimizade adquirida pelo homem frente a um novo mundo. A repetição monotonal é uma súplica insistente que representa um desejo antigo da evolução e que visaria provocar uma convicção pela auto-sugestão. São desejos básicos que são repetidos em alta voz e sincronizados com movimentos a fim de provocar uma realização, mascarar as fraquezas e encobrir defensivamente o homem.

O antepassado não queria (ou não devia?) voltar ao trágico Bailado do Silêncio que tão magicamente o havia prendido. Para substituir o Bailado do Silêncio uma nova forma de magia é introduzida no mundo: a repetição monotonal que hipnotiza o homem dentro de um dever. Neste ponto não sabemos se o seu primeiro dever era também um querer e uma vontade, pouco importa, o certo é que a importância do abandono do Bailado do Silêncio e do advento da repetição monotonal é tão grande que até os dias de hoje são encontradas sobrevivências deste mundo antigo e esquecido.

Os deveres do homem de hoje se tornam realidade pela repetição monotonal na reza, no folclore e no trabalho. Não queremos com isso induzir que o homem só pode se tornar inteligente com o abuso da repetição monotonal.

Os grandes desejos da Nação são repetidos, insistentemente, no folclore, nas canções patrióticas, na reza e nos simuladores de programas políticos, principalmente nas épocas de eleições, provocando uma acumulação sentimental e afetiva que funciona de maneira parecida com a torcida do football e tem um sentido mágico. É estranho que essa repetição monotonal que é um mecanismo essencialmente primitivo, manifestando-se como um movimento vegetativo, possa ter o efeito de levar o organismo a uma realização. Chegaríamos, tentativamente, a uma conclusão onde só uma volta a um passado muito antigo pode induzir o organismo a realizar um aperfeiçoamento. Esta repetição monotonal primitiva funciona para impedir que o homem se afaste dos seus deveres, tanto religiosos como patrióticos, como no divertimento. A sociedade encontrou, através dos séculos, estabilidade no cumprimento desses deveres e pelo canto monotonal consegue impedir que o homem se extravie ou rume muito rapidamente para um mundo melhor.

Parece que o efeito da floresta teria sido o de indicar ao homem o mundo do Dever.             



Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 24 de março de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.