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XIII - OS GATOS DE ROMA
O Samba, a Praça e a Floresta

A rua e a praça são produtos da floresta e não são produtos do desenvolvimento da cidade como muitos imaginam. A rua e a praça nasceram na floresta como conseqüência dos primeiros movimentos do homem, muito antes de aglomerações de vivendas. A rua é um produto do trilho formado pela locomoção do homem abandonando o Bailado do Silêncio, locomoção esta, imposta em reta pelo ritmo do Soluço. O homem soluçando se encantava com a possibilidade de Visão Geográfica, tão grande contraste com o Bailado do Silêncio executado “in loco” e que funcionava como um bailado cerceado pelas barras de uma prisão e produzindo alguns dos sintomas de fera enjaulada.  

A rua, ou melhor, o trilho, continuaria a sua existência sem interrupção abrigando a Marcha Hesitante, ao som do Soluço, com derrame de lágrimas até um ponto de parada imposto pelo cansaço. Este ponto de parada que se torna a praça, é extremamente importante porque ele origina uma série de acontecimentos que marcaria toda a existência do homem até os dias de hoje.

Em primeiro lugar, o cansaço é um lugar intermediário entre a vida e a morte que se repete oscilatoriamente e está ligado à lei geral de abreviação de movimentos, pela qual o movimento salvador provocado pela tempestade de movimentos de um ser em perigo se apresenta em futuras ocasiões diretamente com a forma abreviada e sem passar pelas etapas de transição, tornando-se, desse modo, reflexo. O cansaço é, pois, estranhamente, um movimento reflexo oscilatório mesmo como o sono o é e imita, na sua forma, a fase final do homem, a morte. Antes de mergulhar mais fundo, observamos que a tempestade de movimentos, sem a seleção de um movimento salvador, conduziria à morte do mesmo modo que o movimento salvador, após sofrer a lei de abreviação de movimentos e reduzido a zero quando levado à “outrance”, isto é, quando totalmente abreviado, seria uma expressão da morte, do repouso supremo.

A praça é, pois, um ponto de estacionamento para exibir a existência do movimento reflexo. Observa-se que a intensidade do movimento espontâneo (possivelmente também do movimento reacional) depende sobretudo do estado de cansaço ou repouso, de fome ou de saciedade. O repouso se associa ao homem saciado e a fome ao cansaço. A praça se esboça como um local para satisfazer a um cansaço e a uma fome e é um local apropriado ao sono e ao sonho e ao desenvolvimento do mito. O sonho e o mito destroem a fadiga e o cansaço atuando como forças primitivas, infantis e rejuvenescedoras.

A praça identifica-se com a ausência de movimentos e é, em si, uma manifestação de tristeza que levaria à irresponsabilidade taciturna do sono. A praça recolhe na imobilidade e no estado de hipnose a exuberância do histerismo conspícuo no homem do começo. A praça aparece como conseqüência dos movimentos rítmicos primitivos e estes, por sua vez, são produtos do cansaço e da moléstia do homem de hoje, o que nos leva a concluir que a praça seria mesmo uma conseqüência da fadiga e da moléstia e da má regulagem do mecanismo psíquico superior e é ela bem o local apropriado ao descanso e seria o local apropriado a abrigar e enquadrar a rigidez dos membros...

... A origem da praça não é um produto das necessidades de memória coletiva e de pontos de referência coletivos para o ato de ida e volta, como quer Janet, mas sim apenas um produto da fadiga, do cansaço e da moléstia que acontecem dentro da floresta após a abertura da primeira estrada como conseqüência do rompimento da prisão mágica do Bailado do Silêncio. O advento da rua e da praça provocam o advento da memória coletiva e dos pontos de referência para o ato de ida e volta.

Tendo a estrada e a praça nascido antes do aparecimento da cidade e sendo ambos produtos do primeiro bailado do homem e do seu cansaço quando em demanda de Visão Geográfica e sendo a praça um ponto de exibição do movimento reflexo, são eles acontecimentos aptos a marcar toda a existência do homem até hoje. O Samba que é um desejo de voltar ao Bailado do Silêncio, teria surgido após a primeira praça e como reação elástica do organismo; seria uma forma de arrependimento que surge após o descanso, uma mímica dos membros do corpo, composta de uma conjugação dos movimentos circulares do galho da árvore e da marcha sincronizada ao Soluço e ao Gaguejo. O cansaço e a moléstia provocam sempre a volta aos movimentos rítmicos primitivos.

O arrependimento consiste na tendência de voltar atrás e é bem caracterizado pelos gestos do Samba e pelas palavras do Samba-Canção de hoje. No entanto a imitação e o plágio mimético, já aplicados ao bailado anterior da Marcha Hesitante, impedem que o ritmo do Samba tenha a sua elasticidade completada com uma “grande finale” na volta ao Bailado do Silêncio, possivelmente conduzindo à morte e ao desaparecimento. O plágio mimético impede a realização completa do arrependimento. O plágio mimético cria uma atmosfera que é um empecilho para o fluxo do arrependimento.

A floresta preenchia o seu destino histórico na elaboração dos primeiros movimentos do homem.   



Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 7 de abril de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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Textos anteriores:

Profanação

Notas para a reconstrução de um mundo perdido (XI):
O Bailado do Silêncio


Notas para a reconstrução de um mundo perdido (XII):
O primeiro chefe e a floresta


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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.