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XV - OS GATOS DE ROMA
A alegria e o Crime

A alegria está ligada ao Crime, como também o estão as manifestações de liberdade. Alegria e crime tem as suas origens dinâmicas nos Bailados do Começo, antes do homem aprender a andar.

A alegria é uma conseqüência do Crime. O advento da Alegria precede o advento da virtude. O Bailado está antes do andar como o Crime está antes da Virtude. O andar e a virtude são conseqüências de maior Visão do homem. O andar é um problema de Visão Geográfica e a virtude um de Visão Ética. A evolução traz o abandono do crime que se encontra no Começo. As Forças Fundamentais da História impõe esse abandono.

As manifestações de Alegria de hoje surgiram do mundo do crime no Começo do homem. O conceito de liberdade e independência está intimamente relacionado à escala zoológica. Observa-se que os recém-nascidos dependem menos dos seus semelhantes adultos, se libertam mais depressa destes e amadurecem mais depressa, à medida em que recuamos na escala zoológica. O animal homem recém-nascido é, entre todos os animais recém-nascidos, aquele que tem o maior período de dependência aos seus semelhantes. Esta verdade zoológica nos aponta para um Começo com um grau máximo de liberdade e de independência.

 

Quanto mais independente é um homem mais curta é a sua existência e mais animal ele é. Os homens de épocas recuadas atrás da história tinham a existência curta. Quanto mais evoluído e dependente, mais longa seria a sua existência.

O sentimento de liberdade obtido com a execução do Crime é o mesmo sentimento de liberdade que tem o alienado ao afastar-se do mundo coletivo e ao perder o uso do instinto gregário. A sucessão lombrosiana selvagem-criminoso-alienado representa um ciclo evolutivo: nascimento, vida e morte da liberdade onde o criminoso é o conquistador da liberdade e o alienado o último a usá-la.

Na sua qualidade de conquistador da independência e da liberdade pelo uso do crime, o homem que praticava a Marcha Hesitante prepararia o terreno para o advento do alienado, que é um ser eminentemente plástico e que se encontraria à vontade no ambiente da floresta. As condições físicas da floresta impunham uma certa dinâmica de movimentos e uma predisposição mental adequada. Era o ambiente do Sonho e da Quimera.

O Crime e a conseqüente Alegria aparecendo com a Marcha Hesitante e o Soluço, é a primeira reação violenta contra a Tristeza contida no Bailado do Silêncio, que era ao que parece o bailado do homem surdo, cego e mudo, condições naturais da infância do mundo.

As condições sociais que periodicamente provocam o aparecimento do crime nas sociedades civilizadas de hoje são repetições em miniatura das condições sociais dos povos subdesenvolvidos e são também miniatura das condições sociais dos povos primitivos e das do começo homem do Começo.

A pobreza, a falta de emprego, a falta de casa, a falta de alimentos, o deslocamento nomádico, provocam o advento do crime e são as condições características dos povos subdesenvolvidos e são também as condições em que se encontrava o homem do Começo. Observamos, pois, uma repetição de condições de vida do Começo no advento de um fenômeno que Lombroso classifica de atávico e, ao que parece, acertadamente. Esta volta em miniatura a um passado antigo é suficiente para reviver no homem de hoje com predisposições marcadas do homem antigo, o comportamento dinâmico do crime e, oferece ao homem antigo uma oportunidade de aparecer e intervir na consciência do homem moderno.

Observamos aqui que o homem antigo da estratificação Criminoso pertencente ao período da Marcha Hesitante tinha como condição social de vida o Crime, isto é, todos eram criminosos e quando hoje um estigma constitucional de crime aparece, significa isto: que este estigma é uma sobrevivência de uma época em que todos eram criminosos. O criminoso congênito apenas reproduz um traço comum a todos os homens de certa época antiga, o crime, e que se encontra latente em todos os homens atuais de maneira mais ou menos aparente. Para provocar o aparecimento desse traço comum, o crime é, às vezes, só necessária a aplicação de um estímulo exterior tal como a condição adversa da vida.

As condições sociais adversas funcionam como reagente catalítico perfurando o comportamento estereotipado proveniente dos reflexos condicionados do mundo da consciência e permitindo que os velhos anseios de liberdade e alegria pertencentes ao mundo antigo do crime e da Marcha Hesitante se manifestem hoje pelo crime.

Analisando a situação social do criminoso de hoje e do homem do Começo, observamos que é em essência a mesma situação social encontrada na criança. Tanto o criminoso como a criança, são irresponsáveis pelas suas manifestações exuberantes de independência e se apresentam desprotegidos dos fundamentos da vida e necessitam de proteção e dependência para viver.

Freqüentemente, o comportamento da vida infantil aponta para períodos esquecidos atrás da História, reproduzindo em movimentos e emoção aquilo que foi encoberto pelo fluxo do tempo e esclarecendo, de certa maneira, o que aconteceu com o homem do Começo.

Ao aprender a andar, os gestos da criança com os braços e mãos são de grande importância, porque reproduzem os gestos do homem antigo e esquecido. A criança estica as mãos para tudo quanto aparece.

O mesmo acontece no começo com o homem que havia abandonado o Bailado do Silêncio e que penetrava nos mistérios da Marcha Hesitante, esticando o braço para tudo e tudo agarrando com as mãos.

É o início do Crime e da satisfação de um desejo de posse.

O fato de ter o gesto de agarrar da criança e o gesto de agarrar do criminoso ocorrido com a aprendizagem da marcha pela criança e hipoteticamente com o início da Marcha Hesitante pelo homem do Começo, que era todo ele criminoso, não constitui mera coincidência, mas sim uma confirmação de que a vida da criança reproduz os fatos da evolução do homem.   


Publicado originalmente no Diário de S. Paulo em 21 de abril de 1957.
Transcrição, atualização ortográfica e fixação de texto por Flávia Cera



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é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.