Tempo para respirar: julho 2008 Arquivo

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Já não há atleta que, por esforço individual, possa simplesmente fazer bonito em Pequim no próximo mês. É indispensável a eles um investimento modesto a novas tecnologias as quais podem permitir uma maior aderência ao solo (tênis), uma maior mobilidade na água (aquelas roupas para a natação) ou uma boa bicicleta com pneus muito finos para a redução do atrito. Ou seja: o atrito deixa de ser o problema central do desperdício de energia. Muito pelo contrário, a culpa está na capacidade do atleta em produzir líquido sinovial, aquilo que lubrifica as suas juntas. Em último caso, a culpa está no DNA defeituoso ou, nos casos mais brandos, em uma dieta inadequada. Nesse contexto, a preocupação não é com a força ou mesmo com alguma estratégia de pensamento, mas na capacidade das articulações suportarem os duros treinamentos com a velocidade e o aumento dos movimentos produzidos pelas próteses. Até mesmo no futebol. Quem pensa é o técnico, quem monta o time é a diretoria. A função do jogador é treinar muito para poder ganhar e somente em alguns instantes-já é que ele pode se arriscar a ser criativo. Se ele acerta é herói e, se erra, é um sem-profissionalismo. Mas sempre no final quem fica com o joelho seco e estourado é o jogador, tome-se como exemplo o Ronaldo, o fenômeno. No tênis, temos o Guga. Enfim, são esses com problemas no líquido sinovial os que já não agüentam a repetição dos movimentos e a velocidade das conexões.

 

Segundo Peter Sloterdijk "os participantes do novo jogo mundial da era industrial não se definem através da 'pátria e solo, mas de acessos a estações ferroviárias, terminais aéreos, possibilidades de conexões. O mundo para eles é uma hiper-festa conectada." (SLOTERDIJK, p. 60) Portanto, nunca é uma questão de força ou talento, mas de lubrificação para que a máquina funcione. Os caminhoneiros no Texas põem óleo no motor, as prostitutas da Holanda têm lubrificante íntimo para possibilitar um aumento na quantidade de trabalho e os atletas dependem do corpo para produzir o líquido sinovial. Muito mais interessante seria a liberação das próteses para a quebra de recordes, a exemplo das pernas mecânicas que se demonstram muito melhor do que as humanas para as corridas visto que elas dão um maior impulso a cada passo e, sobretudo, não doem se começarem a enferrujar. (aliás, isso não deve acontecer muito porque elas são de fibra de carbono, muito provavelmente).  "O homo sapiens, é super-exigido pelas grandes civilizações, caso não consiga produzir próteses simbólicas e emocionais para a movimentação em grandes espaços". (SLOTERDIJK, p. 69-70)

 

Sloterdijk, no entanto, diante da inevitabilidade da produção de próteses, aposta na renovação, o que dá na reprodução, em larga medida. Para ele, cumpre se repensar a renovação constante do homem vez que hoje ele é um "homem sem retorno", mas reconhece que o homem é o consumidor final de si mesmo e suas chances. Ele teria que repensar como continuar a viver apesar da ameaça da exaustão. É neste tipo de mundo que noções como crescimento sustentável têm uma relevância inédita.

Contudo, antes de se apostar neste tipo de empreitada, alerto para o fato de que sair da repetição não é algo mágico ou que se dê pela conscientização, ainda que após os sintomas de reumatismo. A prótese não permite nenhuma sensibilidade, basta observar a tela do cinema, a qual não deixa de ser uma prótese sensorial. A repetição dos movimentos acaba com uma anulação da individualidade de cada passo. O passo não importa, mas sim a corrida; depois a maratona; e depois as aventuras (essas sim heróicas) como aqueles malucos que querem atravessar oceanos a nado em uma busca desenfreada para se dar um sentido à singularidade de cada movimento. Mas que não chega nunca. E não há como se fugir. A repetição e aumento dos movimentos parecem somente afastar cada vez mais. O stress das juntas somente impede o atleta de demonstrar que seu DNA é perfeito, ou seja, autenticamente humano.

 

Questiono-me, no entanto, porque ele não reivindica também o bicho. A repetição "dyferenciada" da cena (um passo além e levemente diferente do outro) passa a "diferonça", neologismo de Viveiros de Castro para uma eventual compreensão perspectivista da différance de Derrida. E não é preciso ir muito além para tanto. A roupa do nadador é constantemente tida como pele de tubarão, a perna mecânica que melhora a corrida é canguru e a nova revelação do futebol é um pato. Mas ser bicho não acarreta ver-se como bicho, mas como gente, gente autêntica. E os outros, antes pseudo-fortes, podem passar a ser bichos, o porco capitalista, o cachorro, o rato, a vaca, todos enfim já tiveram uma animalização de outro, para bom ou para mal. Mas é justamente nesse tipo de julgamento que mais nos sentimos gente. Portanto, a reivindicação da vida animal já quase não sentida no corpo, mas  para dentro da política talvez seja a única possibilidade de gestão do homem, e não uma aposta na reprodutibilidade daquilo alcançado pelas próteses. Não adianta querer fazer do líquido vital para substituir o a deficiência de lubrificante o que provém da ejaculação. A cópula de hoje é mesmo lubrificante e preservativo também lubrificado, e não há o que fazer. E se não vemos mais sentido naquilo que nos espera na cama, então que os lubrificantes nos deixem continuar com nossos gestos, mas que possamos, pelo menos, transar como coelhos. 

 

 

REFERÊNCIA

 

SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Estação liberdade, 1999.