ensaios: maio 2008 Arquivo

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"Não é descabido, nem em Sociologia nem em Psicologia Social, considerar-se o fato de que não há sociedade ou cultura humana da qual esteja ausente a preocupação dos vivos com os mortos. E essa preocupação, quase sempre, sob alguma forma de participação dos mortos nas atividades dos vivos. O próprio Positivismo admite que "os vivos" sejam "governados pelos mortos". A gente mais simples admite a participação dos mortos na sua vida sob a forma de "visagens" ou "assombrações" em que as supostas manifestações de espíritos de mortos às vezes se confundem com supostas aparições do próprio Demônio. Ou de pequenos e médios demônios, desde que o mundo demoníaco tem também sua hierarquia (Freyre, Gilberto - prefácio à 1ª edição de Assombrações do Recife Velho, 1951). (Foto: Mr. Pitone)



Quando se atravessa uma antiga fazenda - melhor ainda se for pela noite - e se abre à vista uma imagem da Casa Grande ou da Senzala do local, no mesmo instante, sussurros parecem vir à tona e se mesclar aos passos do passante bem como calafrios que ecoam a tristeza de outros momentos do local não são incomuns. As sombras, em momentos de fraqueza do indivíduo cercam a consciência do vivo para o fato de aquele determinado espaço possuir a dor de um passado mal resolvido. Mas daí surge a questão: seriam as assombrações espíritos do outro lado que voltam à terra dos vivos para atormentar? Penso que não, pois isto vai contra a própria idéia da assombração uma vez que elas não chegaram a ir ao outro lado, e, portanto, seguem atormentadas e condenadas a procurar por justiça para romperem os elos com o mundo material e encontrar a paz. Mas enquanto tiver pendências a resolver, elas continuarão a atormentar os vivos para conseguir ajuda e resolver seus mistérios. Portanto, já que as pendências continuam, as assombrações não vivem do passado, mas persistem atreladas ao tempo linear de forma invisível. Entretanto, quando aparecem aos vivos, elas representam não uma sincronicidade de momentos diferentes (isto não daria qualquer margem à continuidade) mas um alvorecer de toda a historicidade impregnada naquele lugar em uma busca direta pela redenção.

As assombrações, ao que parece, surgem ao vivente ordinário em momentos mais ou menos propícios e em lugares sugestivos como, por exemplo, um cemitério indígena, uma senzala, casarões, campos de batalha e etc. Nestes lugares o pathos é muito evidente e, assim, na solidão, qualquer um é levado a pelo menos refletir sobre a história do local. Fora isto, existem determinados indivíduos que são mais sensíveis a tais fenômenos como os videntes, curandeiros, místicos, crianças e alguns animais. É difícil saber, contudo, até que ponto se pode confiar nos primeiros casos, a saber os adultos, os quais seriam os curandeiros e videntes, visto que, com a possibilidade de lucrar com o sensacionalismo, muitos se dedicam a viver com mentiras sobre espíritos. Também não espero muito de meus gatos porque eles não podem falar. Entretanto, no caso das crianças, há de se concordar que (as mais novinhas) não teriam motivos para mentir, além do fato de que as coitadas vivem apavoradas com os fantasmas e com as dores do mundo (anestesiadas para os adultos) da qual elas começam a testemunhar. Quem nunca pediu para dormir com os pais quando os fantasmas começavam a atormentar a noite de sono? As crianças, portanto, ainda possuem a sensibilidade causada pelo choque da inocência com o clima pesado que os adultos já não se dão conta e, além disso, já começam a falar e a se exprimir de certa forma, o que faz da idade do medo (diria dos sete aos dez anos) uma época única na vida de cada um. Antes de se acostumar com o medo, a criança se assusta tanto com os adultos durante o dia como com os mortos durante a noite.

Como meus parentes já não são muito novos, e também por eu não ter muito contato com crianças dessa faixa etária, a título exemplificativo cito o filme que fez muito sucesso nas bilheterias "O Sexto Sentido" (The Sixth Sense, EUA - 1999), no qual estrelava Bruce Willis. Na trama, um rapaz atormentado por contatos com espíritos é ajudado por um psicólogo que, ao final (desculpem-me quem não assistiu ainda) acaba por se descobrir também uma alma penada. Ali houve uma ajuda mútua entre os dois principais personagens. Primeiramente, o morto resolveu suas pendências nesta vida podendo ajudar o menino já que em outro momento ele falhou com uma determinada criança semelhante. Por outro lado, o menino aprende com o psicólogo a ouvir as assombrações bem como os seus apelos, o que garantiu uma melhor relação com as entidades e consigo mesmo. O mais interessante nessa história é que o garoto nunca deixou de presenciar aqueles espíritos, nem mesmo ao final da película. Ao contrário, teve de assumir seu dom maldito e encarar as visões para, pelo menos, não mais se assustar com elas. Assim, em vez de rezar para o espírito partir, como a maioria das mães ensina aos filhos, ele encarou de frente as aparições. Os que antes eram vultos, revelaram-se então pessoas com causas pendentes para encontrar a paz e, como somente poderiam se livrar do sofrimento com a ajuda do menino sensitivo, este resolveu auxiliá-los nesta tarefa.

Os adultos que o vissem no início do filme, tê-lo-iam (essa é pra ti Nodari!) como uma criança assombrada, como de fato era; já no final, ele passa a ser uma criança macabra apenas mas já não um menino chorão assustado. Eis aí um verdadeiro heroísmo visto que ele abdica da promessa de um futuro brilhante no caminho de Deus e com uma casa branca e dois filhos para viver na companhia de ecos de sofrimento e às vezes devendo fazer alguns atos bobinhos dignos de uma criança (aliás, as crianças têm licença para fazer gestos que aos adultos seriam proibidos pelo grau de infantilidade) mas que, na verdade, são momentos de redenção e de irrupção de toda a historicidade de uma existência.

Mas tanto eu como o leitor não somos mais crianças ou  videntes (acredito). As experiências ocultas ou místicas mais comuns não passam de alguns déjà-vus ou, no máximo, sonhos que, às vezes, dão um dinheirinho no jogo do bicho. Pareceria que a lida com as assombrações que nos sobram são somente aquelas oriundas de locais mal-assombrados e tenebrosos, onde somos expostos ao medo, ou talvez em momentos de extrema debilidade, como, por exemplo, naqueles casos de experiência de quase morte ou, quem sabe, no uso de drogas enteógenas. Quanto aos rituais próprios a isso, não consigo achar que sejam verdadeiras experiências com o pathos das assombrações mas mera glória a certas divindades e, como o próprio nome diz, de forma ritual, o que sugere repetição. No entanto, acredito que, mesmo que não se experiencie comumente os apelos dos mortos, por vezes eles nos dizem algo e influenciam em nossas ações mesmo sem sabermos, sem falar do ponto culminante do contato entre os mundos, que seria a possessão. Deste modo, cada momento parece uma porta de escape para a sugestão destas almas e, somente quando abdicamos completamente do compromisso e damos uma escapada à velha razão, parece que fazemos algumas atitudes justas para com as almas penadas. Entretanto, ao fazer deste modo, ou seja, ao se abdicar das orações a Deus para que Ele afaste as almas e, ao mesmo tempo, assumir a responsabilidade pelas catástrofes da história, surgem dois grandes problemas.

O primeiro deles, o teológico, é justamente a possibilidade de se blasfemar o espírito santo, o qual é o único dos pecados que não terá perdão, ou seja, a atitude que afasta a própria possibilidade de redenção. Eis que, na tentativa de redimir as catástrofes do passado e que persistem nas assobrações, aquele que faz o gesto de redenção pode estar condenado pela eternidade. Mas persiste a dúvida acerca da possibilidade do espírito santo ser algo que está presente em cada um e, portanto, não haveria pecado algum, mas a caridade e a bondade. Caso assim não seja e, portanto, o Espírito Santo seja um ser próprio e separado do homem, poderia, sim haver o risco de condenação por cultuar ídolos, ou seja, em vez de ouvir a palavra de Deus o homem pecador deixar-se-ia levar por espíritos egoístas ou demônios, etc. No entanto, seja com o Espírito Santo ou com as assombrações, o certo é que sempre lidaremos com os espíritos.

Desta condição é que aparece o outro problema, este muito mais sério, o fato de que, quando se abandona o Senhor, para fazer justiça com as próprias mãos pode-se fugir da normalidade. E os resultados bem como as visões de tal atitude podem ser muito fantasmagóricas e não se trata de gostar delas, mas apenas de saber encará-las. A volta à infância, portanto, ao passo que traz a sinceridade e a inocência traz também o medo do escuro, que, se bem administrado, torna-se apenas um certo desconforto, ou melhor, um estranhamento eterno que faz juz à eternidade e dá a justiça verdadeira aos seres etéreis.


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Sem contar algumas salas de cinema perdidas por aí, não se pode dizer que Coffe and Cigarettes, (2003) do diretor Jim Jarmusch, tenha tido uma estréia de impacto no Brasil. Nem poderia. O propósito maior nem seria o de chamar público ou mesmo manter o espectador mudo perante a tela. Curiosamente, aquele que gosta de matar tempo com pequenos atrativos é que se identifica com estas onze cenas em preto e branco filmadas durante 17 anos as quais, em grande parte, estão no Youtube. Com um elenco vasto e de peso, que vai de Roberto Benigni a Iggy Pop, e de Alberto Molina a Cate Blanchett, o propósito da película não é tão grandioso: simplesmente sentar, fumar um cigarro e tomar um cafezinho o que, no final das contas, significa dar um tempo. E não se trata de rever a vida ou divagar sobre a identidade pessoal, mas simplesmente dar um tempo no sentido mais popular do termo. Um coffee break mesmo. No entanto, por mais que se pudesse considerar este filme como um basta para a produção, pressa ou besteirol, o que parece mais evidente é que o espectador assiste a tais cenas com uma certa nostalgia, o que é muito mais sintomático da morte do ócio do que seria recriminá-lo. Em tempos de "guerra contra o tabaco", simples atitudes como fumar no sossego, mais do que ir contra a maré sanitária, possibilita um estranhamento com a própria ação e, por mais que não haja assunto, não se pode negar que sentar para tomar um cafezinho sempre é um bom pretexto para estar em companhia. Sem compromisso.

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O verdadeiro sentido da urgência não está, como sempre se trata, de fazer um improviso às pressas para adequar a coisa ao tempo e ao espaço. Salvar por salvar. Diante da impossibilidade de crítica, uma vez que ela pressupõe o extinto campo experiência, sobra o isolamento para a análise bioquímica.

O tóxico já não é doença. Temos antídotos para o tóxico e também para os efeitos colaterais destes mesmos antídotos. Já não discernimos mais o que é tóxico. Além disso, tudo aparenta ser saudável para os felizes e virulento aos pessimistas. Contudo, as vacinas são tantas que tudo é uniforme em uma massa que nada diz. E o saudável já não se conflitua com o contagioso.

Já que não temos mais o Limbo para julgar as coisas apenas por seus atos, quem sabe seja interessante, em vez de matar todo o rebanho, isolar os elementos e pensar longamente em cima deles, para ver os que são fortes e, para os bichos fracos, deixemo-los aproveitar tranqüilos seus últimos momentos antes do perecimento ocasionado pelo isolamento da quarentena.

Pode-se, quem sabe assim, sanar aquilo que ainda vale para dar a ele um sentido antes original do que convencional.