ensaios: julho 2008 Arquivo

Uma conexão intempestiva: a política experimental de Rui Barbosa e Mangabeira Unger


Rui Barbosa, em seu livro intitulado Teoria Política, o qual à primeira vista parece mais um dos manuais jurídicos tão comuns hoje em dia com suas definições prontas a serem decoradas, logo nas primeiras páginas descreve como a política é essencialmente experimentação.

 

A política não é a ideologia , nem a estética. Não pode ter nem as abstracções ideais da metafísica, nem a inflexibilidade rectilínea e absoluta da dialéctica dedutiva, nem as combinações simétricas da arte. É, por excelência, entre todas, a ciência experimental. Freqüentes vezes, portanto, sucederá que os seus resultados actuais figurem de contraditórios ou desconexos, quer porque os elementos da indução não sejam suficientes para estabelecer a fórmula definitiva da verdade, quer porque entre esses dados superficialmente opostos esteja por descobrir ainda a lei de harmonia interior. (1)

 

Além de ser uma especulação pura, reconhece o autor, a política trabalha sempre com pontos de vista divergentes e, por vezes, contraditórios. Logo na página seguinte ele chega a dizer mesmo que a política como radicalismo deve ser vista como "um elemento de ordem, um princípio de paz", que, ao mesmo tempo em que vai impossibilitar que algum os extremismo particular triunfe, vai ser a mola propulsora do espírito revolucionário quando o marasmo se instala.

Isso é algo que, contudo, não é privilégio do debate entre homens políticos, mas um elemento de fundamentação pluralista da própria atividade do político. Basta ver como Rui Barbosa em certas épocas era conservador, em outras positivista, posteriormente socialista, etc. Poder-se-ia, portanto, haver uma outra leitura do fato de uma série de intelectuais brasileiros, tais como o próprio Rui ou Pontes de Miranda, utilizarem descabidamente uma série de teorias divergentes para o desenvolver de seu pensamento.

Se a política é experimentação, a qual, segundo Rui, não se conhece a lei de sua harmonia interior, talvez porque ela ainda estivesse para ser descoberta, o ministro e professor Roberto Mangabeira Unger, entende que não temos nenhuma possibilidade de explicação verossímil das estruturas institucionais. Nem por isso ele deixa de associar a política à experimentação.

 

O projeto democrático, liberto tanto de otimismo dogmático quanto de pessimismo dogmático, é o esforço de identificar as estruturas práticas que se situam na área de coincidência possível entre as condições de progresso material e as condições de independência individual; a esperança de encontrar essa área de coincidência faz sentido porque tanto o progresso material quanto a liberação do indivíduo dependem da aceleração do aprendizado coletivo pelo experimentalismo prático. Ambos exigem que sujeitemos práticas sociais a um ajuste experimental, e que avancemos em direção àquelas práticas que nos encorajam a ajustá-las cada vez mais. (3) (grifei)

 

Unger, contudo, chega a alertar para o fato de que esse experimentalismo não pode se ater a um fetichismo institucional, ou seja, esperar que as mudanças se dêem de forma verticalizada a partir de planos ou de humanismos. Também não é algo que acredita em uma espontaneidade da sociedade ou mesmo da tão acreditada solução nas agremiações ou identidades coletivas, as quais são apenas teimosia de diferença. Não. A única capacidade que identidades coletivas têm de produzir diferença real seria nas mudanças estruturais. A título de ilustração, cumpre relembrar o exemplo dado pelo autor sobre a propriedade, a qual, deve, ao invés de reproduzir em larga escala a socialização da propriedade individual, dar lugar a direitos de propriedade fragmentários, condicionais e temporários, garantindo a gestores, entidades, fundos sociais ou pequenos empresários a possibilidade de gestão circunstancial, o que não deixa de ser uma experimentação.

 

Cumpre saber se a conexão entre possibilidade e utopia defendida por Unger e Rui Barbosa, pensadores tão distanciados no tempo cronológico, pode ser tomada como um exemplo de uma teoria política brasileira. Curiosamente, se isto fosse tomado como um modelo político já entraria em contradição com seus propósitos. No entanto, essas experimentações no tempo do seqüestro da experiência enquanto atitude poderiam ser muito bem vindas em tempos realistas e pragmáticos na política brasileira. Faz-se lei de forma circunstancial e em decorrência de fatos específicos e, por outro lado, nota-se que as discussões políticas da população somente são repeteco de discursos de radicalização do aparato estatal para conter a realidade, compreendida exclusivamente como violência. A experimentação, quem sabe, pode ser uma alternativa à incapacidade de se reconhecer representações artísticas que sejam atos de mudanças, ou seja, pode fazer pensar sobre a possibilidade da mudança de estruturas sem que se tome por base modelos os mesmos modelos racionolóides. 


(1) BARBOSA, Rui. Teoria política. São Paulo: W. M. Jackson, 1964, p. 3.

(2) UNGER, Roberto Mangabeira. O Direito e o futuro da democracia. Tradução de Caio Farah Rodriguez e Marcio Soares Grandchamp. São Paulo: Boitempo, 2004,  p. 16-17.



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Já não há atleta que, por esforço individual, possa simplesmente fazer bonito em Pequim no próximo mês. É indispensável a eles um investimento modesto a novas tecnologias as quais podem permitir uma maior aderência ao solo (tênis), uma maior mobilidade na água (aquelas roupas para a natação) ou uma boa bicicleta com pneus muito finos para a redução do atrito. Ou seja: o atrito deixa de ser o problema central do desperdício de energia. Muito pelo contrário, a culpa está na capacidade do atleta em produzir líquido sinovial, aquilo que lubrifica as suas juntas. Em último caso, a culpa está no DNA defeituoso ou, nos casos mais brandos, em uma dieta inadequada. Nesse contexto, a preocupação não é com a força ou mesmo com alguma estratégia de pensamento, mas na capacidade das articulações suportarem os duros treinamentos com a velocidade e o aumento dos movimentos produzidos pelas próteses. Até mesmo no futebol. Quem pensa é o técnico, quem monta o time é a diretoria. A função do jogador é treinar muito para poder ganhar e somente em alguns instantes-já é que ele pode se arriscar a ser criativo. Se ele acerta é herói e, se erra, é um sem-profissionalismo. Mas sempre no final quem fica com o joelho seco e estourado é o jogador, tome-se como exemplo o Ronaldo, o fenômeno. No tênis, temos o Guga. Enfim, são esses com problemas no líquido sinovial os que já não agüentam a repetição dos movimentos e a velocidade das conexões.

 

Segundo Peter Sloterdijk "os participantes do novo jogo mundial da era industrial não se definem através da 'pátria e solo, mas de acessos a estações ferroviárias, terminais aéreos, possibilidades de conexões. O mundo para eles é uma hiper-festa conectada." (SLOTERDIJK, p. 60) Portanto, nunca é uma questão de força ou talento, mas de lubrificação para que a máquina funcione. Os caminhoneiros no Texas põem óleo no motor, as prostitutas da Holanda têm lubrificante íntimo para possibilitar um aumento na quantidade de trabalho e os atletas dependem do corpo para produzir o líquido sinovial. Muito mais interessante seria a liberação das próteses para a quebra de recordes, a exemplo das pernas mecânicas que se demonstram muito melhor do que as humanas para as corridas visto que elas dão um maior impulso a cada passo e, sobretudo, não doem se começarem a enferrujar. (aliás, isso não deve acontecer muito porque elas são de fibra de carbono, muito provavelmente).  "O homo sapiens, é super-exigido pelas grandes civilizações, caso não consiga produzir próteses simbólicas e emocionais para a movimentação em grandes espaços". (SLOTERDIJK, p. 69-70)

 

Sloterdijk, no entanto, diante da inevitabilidade da produção de próteses, aposta na renovação, o que dá na reprodução, em larga medida. Para ele, cumpre se repensar a renovação constante do homem vez que hoje ele é um "homem sem retorno", mas reconhece que o homem é o consumidor final de si mesmo e suas chances. Ele teria que repensar como continuar a viver apesar da ameaça da exaustão. É neste tipo de mundo que noções como crescimento sustentável têm uma relevância inédita.

Contudo, antes de se apostar neste tipo de empreitada, alerto para o fato de que sair da repetição não é algo mágico ou que se dê pela conscientização, ainda que após os sintomas de reumatismo. A prótese não permite nenhuma sensibilidade, basta observar a tela do cinema, a qual não deixa de ser uma prótese sensorial. A repetição dos movimentos acaba com uma anulação da individualidade de cada passo. O passo não importa, mas sim a corrida; depois a maratona; e depois as aventuras (essas sim heróicas) como aqueles malucos que querem atravessar oceanos a nado em uma busca desenfreada para se dar um sentido à singularidade de cada movimento. Mas que não chega nunca. E não há como se fugir. A repetição e aumento dos movimentos parecem somente afastar cada vez mais. O stress das juntas somente impede o atleta de demonstrar que seu DNA é perfeito, ou seja, autenticamente humano.

 

Questiono-me, no entanto, porque ele não reivindica também o bicho. A repetição "dyferenciada" da cena (um passo além e levemente diferente do outro) passa a "diferonça", neologismo de Viveiros de Castro para uma eventual compreensão perspectivista da différance de Derrida. E não é preciso ir muito além para tanto. A roupa do nadador é constantemente tida como pele de tubarão, a perna mecânica que melhora a corrida é canguru e a nova revelação do futebol é um pato. Mas ser bicho não acarreta ver-se como bicho, mas como gente, gente autêntica. E os outros, antes pseudo-fortes, podem passar a ser bichos, o porco capitalista, o cachorro, o rato, a vaca, todos enfim já tiveram uma animalização de outro, para bom ou para mal. Mas é justamente nesse tipo de julgamento que mais nos sentimos gente. Portanto, a reivindicação da vida animal já quase não sentida no corpo, mas  para dentro da política talvez seja a única possibilidade de gestão do homem, e não uma aposta na reprodutibilidade daquilo alcançado pelas próteses. Não adianta querer fazer do líquido vital para substituir o a deficiência de lubrificante o que provém da ejaculação. A cópula de hoje é mesmo lubrificante e preservativo também lubrificado, e não há o que fazer. E se não vemos mais sentido naquilo que nos espera na cama, então que os lubrificantes nos deixem continuar com nossos gestos, mas que possamos, pelo menos, transar como coelhos. 

 

 

REFERÊNCIA

 

SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Estação liberdade, 1999.