ensaios: julho 2009 Arquivo

Eis aqui um resumo do texto que apresentei no último Congresso do Conselho de Pesquisa em Pós-graduação em Direito (CONPEDI). Como lá não há debate acadêmico nenhum, disponibilizo aqui um aspecto da idéia principal de minha dissertação para tentar publicizá-la de alguma forma.

 

Observa-se na teoria contemporânea do direito uma crescente tendência por uma busca de abertura com relação ao normativismo, o qual se fez muito presente na primeira metade do século XX. Tal abertura, por sua vez, não se dá de uma forma ausente de justificação, de teoria ou de necessária sistematização. Tanto na concepção tipicamente neoconstitucionalista quanto na teoria dos sistemas de Luhmann, entre outras, existe uma inegável preocupação com a flexibilização do ordenamento face às novas mudanças sociais, cujo ritmo cada vez mais se acelera de sorte que o direito de cunho estritamente positivista já não consegue acompanhá-las.

No entanto, enquanto novos modelos vêm sendo construídos no direito, não há uma necessária preocupação com o problema do excesso de mudanças dentro do próprio ordenamento, normalmente tidas como conseqüências naturais de um direito que pretenda dar respostas a uma sociedade em constante mutação. Contudo, até que ponto um direito pode querer absorver o ritmo das mudanças sociais de forma a conseguir manter a sua coerência e sistematicidade? Neste contexto, a inflação normativa é um termo que merece ser devidamente conceituado uma vez que, muito embora ela seja reconhecida, muito pouco sobre ela foi pensado. 

Sustenta-se que a inflação normativa, antes de dizer respeito apenas à criação excessiva de leis (inflação legislativa) ou mesmo à proliferação de normas de baixa hierarquia, como decretos, instruções normativas, etc, também deve considerar as próprias decisões judiciais e até mesmo os mais diversos atos administrativos. Isto, contudo, não implica criar uma tipificação conforme várias espécies ou modalidades diferentes de normas, já que o que pode servir como principal ponto de apoio para a sustentação deste conceito consiste em uma axiologia para cada caso específico, ou seja, normas ad hoc, noção abrangente o bastante para associar lei, jurisprudência e ato administrativo. Em outras palavras, o ponto de partida para se pensar a proliferação das normas passa a ser a imperatividade da decisão sem estar acompanhada de universalidade, o que faz da prática judiciária, principalmente a jurisprudência, algo cada vez mais casuístico.         

Muito embora se possa pensar que, quando o ritmo da sociedade se acelera, a produção de normas também deva aderir a uma nova velocidade, isto termina por criar uma espécie de ameaça à noção clássica de ordenamento, a qual é imprescindível mesmo aos maiores críticos do direito positivista.

excess_nou.jpgNo entanto, por mais que esta aceleração no direito possa hoje chamar atenção aos estudos dos juristas, seria forçoso pensar este fenômeno como algo exclusivo da época recente, como se algum dia houvesse existido um ordenamento jurídico perfeito e que conseguisse ter uma imperatividade que fosse completamente condizente com o mundo dos fatos. É por tal razão que a observação da inflação normativa como decadência do ordenamento seria uma conclusão precipitada enquanto não se observa a relação mesma que existe entre excesso de normas e ordenamento jurídico. O ordenamento em si, desde que se respeite os procedimentos de criação de normas não é formalmente ameaçado. O mesmo não se pode dizer da sistematicidade do ordenamento, a qual, como se demonstrará, é fonte de inúmeras manobrais intelectuais por parte da teoria do direito no sentido de manter um sistema, ainda que maleável. Cumpre, portanto, repensar a distinção entre sistema e acidentes desse mesmo sistema bem como sua relação aos fatos sem cair em um retorno nostálgico ao normativismo, o que seria uma desconsideração completa da preocupação dos autores contemporâneos da teoria do direito. Cumpre, portanto, estabelecer o que estas teorias que primam por um direito mais flexível e a um sistema mais genérico - um direito como construção - ameaçam os pressupostos mínimos de ordenamento jurídico, do qual não podem e nem querem dispor.

A teoria do direito do século XX esteve sempre pautada por um intuito de sistematização. Enquanto na primeira metade do século se observa um sistema fechado dentro da lógica da subsunção, na segunda, os sistemas passam a buscar uma maior abertura de critérios sob o pretexto de haver uma maior correspondência do direito com a dinamicidade da sociedade atual. Isto indica que o fenômeno da inflação normativa está diretamente ligado a uma tentativa teórica de se compreender o direito mesmo sob um processo de fragmentação em decorrência de uma proximidade aos fatos. Eis que , em vez de decadência do sistema, o conceito aqui proposto de inflação normativa - que não deixa de ser uma crise de legalidade - consiste em uma hiper-realização do sistema, como que o sistema para algo em particular e a cada vez. A suspeita que surge com essa imperatividade sem universalidade, no entanto, passa a ser a de que, além dos acidentes justificarem os sistemas, eles não são apenas uma novidade no mundo dos fatos que justifica a modificação do direito. A interação entre direito e fato é muito mais complexa do que se supõe. Não se trata somente de pensar que os fatos servem de obstáculo e ao mesmo tempo razão de ser do próprio direito. Ambos se influenciam mutuamente e a maior conseqüência disso é que a necessidade a que se apela para a suspensão ou modificação do ordenamento jurídico, a origem da inflação normativa, é, no mais das vezes, construída e não simplesmente dada.

A questão da inflação normativa, antes de ser buscada no número de leis ou na quantidade de decisões contra legem, portanto, é indiscernível da noção de sistema. Contudo, a questão deve ser deslocada de forma que o que seria tomado como deficiência do sistema jurídico passe a ser visto como uma parte dele e até mesmo um pressuposto, o qual pode se apresentar como grande quantia de normas de exceção ou mesmo em arbitrariedades por parte dos intérpretes. Dentro deste enquadramento, a inflação normativa que se deixa entrever por um direito cada vez mais tomado como construção, não pode mais ser tomada somente como desconstrução - avanço misturado a ameaça - necessária do sistema para que se abra uma desconfiança de que a própria necessidade pode ser construída, e que, em última instância, o excesso é exceção.

  

*imagem: Mandy Sand: Excess, Óleo sobre tela.

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Eu tinha que trocar a data da minha passagem para vir embora para o Brasil dentro de alguns meses. O escritório para fazer esse procedimento ficava no centro de Bruxelas. Rua Welvengracht. Para facilitar as coisas pedi para uma grande amiga me explicar como chegar nesse endereço, cujo nome eu não conseguia nem mesmo pronunciar. Logo veio ela: "ah, você sai aqui pela rue d'Assaut e depois entra na Fossé aux Loups". Respondi: "ah bom, e depois onde fica a Welvengracht?" Tive a resposta de que a rua era a mesma. Como assim, a mesma, pensei. Era só uma questão de tradução, respondeu a querida belga. A rua era a mesma, somente mudava a língua. Até se pode pensar em alguma proximidade entre o termo francês "Loups" e o Holandês "Wolven", que se parece com "Wolves" do Inglês. Mas na minha cabeça, não fazia tanto sentido. Depois eu tirei a passagem sem problema algum. Já nem me lembro de como era a rua. Para falar a verdade, nem me lembro de como foi tudo lá no dia. Mas nunca me esqueci dos "dois" nomes da Rua. Na curiosidade, procurei algumas imagens de lá. Não tive muitas, até porque ela  não tinha nada de espetacular, nem mesmo o fato de ter dois nomes, ou melhor, um nome em duas línguas, porque todas as ruas da capital da Bélgica se traduzem da mesma forma. Mas achei duas imagens bem interessantes.

  

Uma é a de um projeto de um pequeno jardim suspenso para uma das esquinas de Wolvengracht e outra delas é a de um restaurante de um hotel atual que já tem ares de jardim suspenso, como em Babel. (Não fazem uma Torre porque em geral Bruxelas não permite os arranha-céus) O problema dessa rua é que eles pensam que, como a Bélgica, o lugar é o mesmo e que somente há uma mudança de língua, tradução portanto. Essa conseqüência vem recentemente trazendo maiores conseqüências. A pior delas é o fato de que a Bélgica é um país com tensões lingüísticas terríveis e está quase a prestes de se separar. Isto na capital da União Européia, que era para ser o maior exemplo do funcionamento da razão comunicativa de Habermas. De fato é, porque há toda uma pompa de diálogo por uma união de povos quando no próprio país sede a quase milenar Universidade de Louvain teve que se separar em campus francófono e campus neerlandófono (supostamente um lugar que era para ser bastante racional e comunicativo) em razão das brigas violentas entre os seus estudantes. Já houve inclusive algumas propostas de separar o campeonato de futebol em duas línguas. 

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(Projeto de Jardim Suspenso na rua Fosso dos Lobos. Fonte: http://www.archiborescence.net/archiborescence/2150/J-V-Loups.html) Abaixo foto do Hotel Radisson Blu Royal Hotel, também lá. Detalhe nas plantas suspensas.


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A tradução é impossível, mas terei de fazer um esforço com ela

ara tirar as últimas conclusões. "Fossé aux Loups", em português poderia ser "Fosso dos Lobos" ou "Fosso aos Lobos", para ser mais literal. Poço e lobo. Hoje o projeto europeu pensa no poço. Mas parece que estão nele em busca de uma arca que apenas desconfiam ou às vezes tentam sair dele para poder ver o céu. Há uma busca pela unidade ausente na idéia de uma materialidade impossível, mas traduzível. Em vez de se pensar puramente a partir do poço, e tentar se acostumar com ele, procura-se sair pelo apelo à origem, à língua, ou mesmo a coletividade. A idéia de um Estado verdadeiro com diversas versões é um tipo de guerra, que nem mesmo depende de aparato estatal para funcionar. Aqueles que não ajudam a cavar mais o fosso (nacionalistas, neonazistas) ou a construir a escada (habermasianos), não  têm vida fácil não. Seus colegas humanitários ou nacionalistas têm lá suas sanções. Mas, enquanto não se separa ou une de vez a Bélgica, enquanto se discute muito nos escritórios europeus e, sobretudo, se traduz muito em Bruxelas, lembro que lá também fica a sede da OTAN, mas nessa última nunca ouvi falar sobre problemas de comunicação não. Nem nas relações comerciais. Os militares são bem mais pragmáticos. O mercado também.


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