Eis aqui um resumo do texto que apresentei no último Congresso do Conselho de Pesquisa em Pós-graduação em Direito (CONPEDI). Como lá não há debate acadêmico nenhum, disponibilizo aqui um aspecto da idéia principal de minha dissertação para tentar publicizá-la de alguma forma.
Observa-se na teoria contemporânea do direito uma crescente tendência por uma busca de abertura com relação ao normativismo, o qual se fez muito presente na primeira metade do século XX. Tal abertura, por sua vez, não se dá de uma forma ausente de justificação, de teoria ou de necessária sistematização. Tanto na concepção tipicamente neoconstitucionalista quanto na teoria dos sistemas de Luhmann, entre outras, existe uma inegável preocupação com a flexibilização do ordenamento face às novas mudanças sociais, cujo ritmo cada vez mais se acelera de sorte que o direito de cunho estritamente positivista já não consegue acompanhá-las.
No entanto, enquanto novos modelos vêm sendo construídos no direito, não há uma necessária preocupação com o problema do excesso de mudanças dentro do próprio ordenamento, normalmente tidas como conseqüências naturais de um direito que pretenda dar respostas a uma sociedade em constante mutação. Contudo, até que ponto um direito pode querer absorver o ritmo das mudanças sociais de forma a conseguir manter a sua coerência e sistematicidade? Neste contexto, a inflação normativa é um termo que merece ser devidamente conceituado uma vez que, muito embora ela seja reconhecida, muito pouco sobre ela foi pensado.
Sustenta-se que a inflação normativa, antes de dizer respeito apenas à criação excessiva de leis (inflação legislativa) ou mesmo à proliferação de normas de baixa hierarquia, como decretos, instruções normativas, etc, também deve considerar as próprias decisões judiciais e até mesmo os mais diversos atos administrativos. Isto, contudo, não implica criar uma tipificação conforme várias espécies ou modalidades diferentes de normas, já que o que pode servir como principal ponto de apoio para a sustentação deste conceito consiste em uma axiologia para cada caso específico, ou seja, normas ad hoc, noção abrangente o bastante para associar lei, jurisprudência e ato administrativo. Em outras palavras, o ponto de partida para se pensar a proliferação das normas passa a ser a imperatividade da decisão sem estar acompanhada de universalidade, o que faz da prática judiciária, principalmente a jurisprudência, algo cada vez mais casuístico.
Muito embora se possa pensar que, quando o ritmo da sociedade se acelera, a produção de normas também deva aderir a uma nova velocidade, isto termina por criar uma espécie de ameaça à noção clássica de ordenamento, a qual é imprescindível mesmo aos maiores críticos do direito positivista.
No entanto, por mais que esta aceleração no direito possa hoje chamar atenção aos estudos dos juristas, seria forçoso pensar este fenômeno como algo exclusivo da época recente, como se algum dia houvesse existido um ordenamento jurídico perfeito e que conseguisse ter uma imperatividade que fosse completamente condizente com o mundo dos fatos. É por tal razão que a observação da inflação normativa como decadência do ordenamento seria uma conclusão precipitada enquanto não se observa a relação mesma que existe entre excesso de normas e ordenamento jurídico. O ordenamento em si, desde que se respeite os procedimentos de criação de normas não é formalmente ameaçado. O mesmo não se pode dizer da sistematicidade do ordenamento, a qual, como se demonstrará, é fonte de inúmeras manobrais intelectuais por parte da teoria do direito no sentido de manter um sistema, ainda que maleável. Cumpre, portanto, repensar a distinção entre sistema e acidentes desse mesmo sistema bem como sua relação aos fatos sem cair em um retorno nostálgico ao normativismo, o que seria uma desconsideração completa da preocupação dos autores contemporâneos da teoria do direito. Cumpre, portanto, estabelecer o que estas teorias que primam por um direito mais flexível e a um sistema mais genérico - um direito como construção - ameaçam os pressupostos mínimos de ordenamento jurídico, do qual não podem e nem querem dispor.
A teoria do direito do século XX esteve sempre pautada por um intuito de sistematização. Enquanto na primeira metade do século se observa um sistema fechado dentro da lógica da subsunção, na segunda, os sistemas passam a buscar uma maior abertura de critérios sob o pretexto de haver uma maior correspondência do direito com a dinamicidade da sociedade atual. Isto indica que o fenômeno da inflação normativa está diretamente ligado a uma tentativa teórica de se compreender o direito mesmo sob um processo de fragmentação em decorrência de uma proximidade aos fatos. Eis que , em vez de decadência do sistema, o conceito aqui proposto de inflação normativa - que não deixa de ser uma crise de legalidade - consiste em uma hiper-realização do sistema, como que o sistema para algo em particular e a cada vez. A suspeita que surge com essa imperatividade sem universalidade, no entanto, passa a ser a de que, além dos acidentes justificarem os sistemas, eles não são apenas uma novidade no mundo dos fatos que justifica a modificação do direito. A interação entre direito e fato é muito mais complexa do que se supõe. Não se trata somente de pensar que os fatos servem de obstáculo e ao mesmo tempo razão de ser do próprio direito. Ambos se influenciam mutuamente e a maior conseqüência disso é que a necessidade a que se apela para a suspensão ou modificação do ordenamento jurídico, a origem da inflação normativa, é, no mais das vezes, construída e não simplesmente dada.
A questão da inflação normativa, antes de ser buscada no número de leis ou na quantidade de decisões contra legem, portanto, é indiscernível da noção de sistema. Contudo, a questão deve ser deslocada de forma que o que seria tomado como deficiência do sistema jurídico passe a ser visto como uma parte dele e até mesmo um pressuposto, o qual pode se apresentar como grande quantia de normas de exceção ou mesmo em arbitrariedades por parte dos intérpretes. Dentro deste enquadramento, a inflação normativa que se deixa entrever por um direito cada vez mais tomado como construção, não pode mais ser tomada somente como desconstrução - avanço misturado a ameaça - necessária do sistema para que se abra uma desconfiança de que a própria necessidade pode ser construída, e que, em última instância, o excesso é exceção.
*imagem: Mandy Sand: Excess, Óleo sobre tela.
Caro Léo,
Seu texto é especialmente instigante; a sugestão de que a emergência de um modelo decisionista deve estar conectada (e, por isso não pode ser ignorada quando se fala no tema do excesso de normas) com a inflação normativa é algo realmente interessante. Para mim, isso vai ao encontro de um papel que jurídico passa a ter nos horizontes contemporâneos, biopolíticos, que me parece ser o seguinte: o entrecruzamento entre o normal e o disciplinar no âmbito dos mecanismos de segurança; isto é, uma disciplina que ainda é, como Foucault descrevera, a arte das distribuições, mas que se integrou historicamente à norma, como o que pode regrar a sutileza, o detalhe, o mais fino grão dos sujeitos e da vida. O decisionismo não deflagra simplesmente a decadência do universal: ele transforma a exceção em universal, em regra; a decisão soberana põe à mostra o fundamento da norma e da disciplina: a violência fundadora do direito, a soberania. Ao mesmo tempo, creio que os universais não são de todo perdidos: eles sofrem deslocamentos; o que é perdido, pela imanência da decisão ao personalismo do soberano ou do governado, é o sentido de comunidade, daquilo que é singularmente comum - e não necessariamente universal. Não vai aqui nenhuma crítica a seu texto. Muito pelo contrário. Na minha visão, você tem toda razão em dizer que a pretensão (neokantiana) dos positivistas era o atingimento de uma espécie de universalidade, até mesmo metodológica, epistemológica. Me parece com razão, também, o argumento de que esse sentido, hoje, é discursivamente abandonado em benefício de uma argumentação imanente ao caso concreto (necessidade, circunstância, fatos etc.). Não vejo, contudo, um efetivo abandono do universal, na medida em que a exceção, paradoxalmente, toma o seu lugar - ela é, agora, estendida a todos, universalmente. É isso que nos faz reencontrar, na aparente imanência da decisão, uma nova transcendência. Como você enxerga tudo isso à luz do teu tema? Um grande abraço do amigo,
Oi Murilo! Obrigado pelo teu belo comentário aqui neste meu esboço inicial. Fizeste uma leitura bastante interessante do que coloquei e, com certeza, deixaste tua marca. Trouxeste uma questão e um novo ponto de fuga. É bastante original colocar a exceção como substitutiva da pretensão de transcendência dos positivistas em uma nova pretensão transcendente de exceção. O que eu poderia te responder para contrariar, seria (imaginemos) algo baseado na frase (que nem sei se o Vargas falou mesmo) "aos meus amigos tudo, aos meus inimigos a lei". Isto porque a exceção, a princípio não excluiria a norma, mas a suspenderia, etc, etc. Segundo esse silogismo eu teria que discordar de ti e dizer que às vezes a lei (universal) se aplica e as vezes somente se decide, não passando de norma(exceção). O problema, contudo, e aí a tua colocação de certa forma persiste, é que já não se sabe exatamente mais o que é legal e o que é normativo, o que é particular e o que é universal. Os limites não são visíveis, por isso mesmo estamos falando do paradigma da exceção como um LIMIAR, indiferenciação e não fronteira. E o mais curioso é que, diante desse contexto, a principal atitude é o decisionismo que tem nas teorias da argumentação ou interpretação um fundamento que acaba sendo transcendente. É claro que essas teorias não podem ser simplesmente ditas como transcendentes. Por serem um pouco pragmáticas, parecem meio fechadas em algo do estilo Heidegger-Gadamer (eu tenho uma pré-compreensão na hora de decidir, mas, ao fazê-lo mudo minha pré-compreensão, a maioria parece girar por aí. Até mesmo Luhmann se parece um pouquinho com isso). Entretanto, daí teu comentário ser foucaultiano, o que importa neste caso é a prática. E a pratica, sim, acaba tendendo para a transcendência por sua atitude, seja por ser positivista, seja por não ser. E voilà: temos aí uma aporia. O problema talvez seja a própria aplicação do direito.
Era mais ou menos isso que tinhas pensado?
Um abração