
Sobre a afirmação de Lula de que "Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão", o secretário-geral da CNBB, Dom Dimas Lara Barbosa rebateu dizendo que Jesus não fez alianças com Fariseus. Disse o bispo que "Para governar o Brasil? Estamos tão mal assim? Queria dizer que, sem dúvida Judas foi discípulo de Cristo, mas Cristo conhece o coração das pessoas e reconhece a liberdade de cada um. Cristo não fez alianças com fariseus. Pelo contrário, teve palavras duras para com eles. Deus conhece o coração das pessoas". Isso foi amplamente divulgado na Folha de São Paulo, ao menos na versão digital. O Senador Cristovam Buarque entrou na onda e falou que "Jesus poderia perdoar Judas, fazer acordo jamais". Trata-se de uma resposta do jornalão a uma entrevista de longa duração concedida por Lula à própria Folha em que se tratou de diversos temas, desde alianças políticas até ironias ao pré-candidato de oposição José Serra.
Obviamente que não acredito que o bispo teria o intuito de querer comparar Lula com Cristo. Se assim o fosse, em primeiro lugar, Dom Dimas teria que aceitar que a divindade que representa Cristo ou não seria restrita a ele ou, pior que isso, seria uma virtude ordinária. Não. Para que se mantenha a coerência católica, Cristo deve ser superior aos mortais. Tudo bem que ele poderia ser um exemplo, e muitas das ações cometidas pelos homens deveriam se espelhar na virtude do líder espiritual, o que, a princípio, não teria sido a opção de Lula quando adere a um excesso de pragmatismo em detrimento de ações de puros fins.
Mas é interessante perceber como se pode inferir do discurso do bispo uma pretensão de justiça dos fins em contraposição a uma operação dos meios, os quais, se bem se entende, abdicariam de seus ideais fundadores para uma mera manutenção do status quo. Em Crítica da Violência/Crítica do Poder, Walter Benjamin já tratou deste tema sobre o qual diz haver uma violência mítica que põe o direito e uma outra que mantém o direito. Benjamin fala de uma terceira, dita divina, que suspenderia o próprio direito para uma justiça completa de pura finalidade. Esta sim, digna de uma divindade, como o próprio nome diz. Curiosa também é a releitura desconstrutiva que Derrida faz desse texto de Benjamin. Dentro do livro Força de Lei, portanto, o francês fala que as próprias categorias de Benjamin não se sustentam, o que é muito lógico em um autor que fala sobretudo de fantasmas. Para Derrida, enfim, as categorias de violência fundadora e mantenedora chegam a se confundir, o que sugere que a operação do direito seria ao mesmo tempo uma reatualização da origem e, também, uma ameaça a ela.
Mas Derrida não chegou a ler muito bem o constitucionalista alemão Carl Schmitt (grande contribuidor do nazismo) e correspondente de W. Benjamin, como o fez Agamben, para quem a suspensão do direito e das instituições não são nenhuma forma de ameaça, mas apenas lhes dão força. Assim é que o poder organizado somente funciona onde há um preparo ou uma exceção que seja capaz de deixar o social pronto para a organização do direito.
Curiosa é essa
busca por uma justiça pura da parte dos neo-moralistas, como Cristovam Buarque, Gabeira, etc, ou seja, a busca de ações de puro fim em
contraposição a um sistema corrupto em que somente se governa na abdicação dos
ideais fundadores. Nada mais ambíguo do que essa reação moralista de Buarque e
da CNBB sobre o que Lula falou. ( e se ele dissesse o contrário, provavelmente o PIG e os neomoralistas diriam que ele se pretenderia messias em vez de homem; que seria sebastianismo, etc) Isto porque
quando se procura um modelo de justiça direta, contra a burocracia ou o podre da
social-democracia, pensa-se que essa decadência se deve a uma religião sem dogma, e que se deveria propor em contraposição o dogma se religião. Embora pareça bonito, foi esse o debate dos anti-liberais
de Weimar. Tudo bem. Provavelmente os que criticaram Lula não descartam a exigência do Estado de Direito, e diriam que nunca propuseram retirar a mediação da religião que é o jogo da política, afinal todos
seriam democráticos e crentes no Estado de Direito. Contudo, é aí reside o problema.
Benjamin falava de uma justiça dos fins pura que, no entanto, vinha para ser
revolucionária e sobretudo anti-teleológica e de forma alguma
institucionalista. Portanto uma justiça dos fins que se opera em conjunto com o aparato
institucional sem questioná-lo ou tencioná-lo e principalmente sem aceitar as
conseqüências de sua própria violência, ou seja, a projeção de uma justiça dos
fins legislada ou universalizada é apostar justamente na suspensão oportuna e
constante: bem o que funda os velhos e novos estados de exceção e a sua indiscernibilidade da normalidade.
Resumindo: ainda bem que Lula nem é e nem se considera algum messias, pelo menos enquanto durar seu mandato. Só um golpista deseja a autoridade de um ser de moral inatacável e que, portanto, não negocia nem mesmo com seus traidores (mesmo que sejam Judas eleitos pelo povo). Enfim, se Lula se pensasse como auto-suficiente, como muitos já se pensaram na história do Brasil, e se tal fosse levado ao extremo, não faltariam Judas para 'se auto-enforcar' nas celas das ditabrandas. E depois de vinte anos seus apóstolos não hesitariam em perdoar os 'traidores' dando-lhes anistia. Mas negociar de verdade com eles, não negociariam nunca.
