Tempo e Direito: sobre o Decreto-lei de introdução ao Código Civil

|
Eis uma apresentação de meu Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2007


Questionar acerca da natureza do tempo é algo quase tão antigo como a filosofia. Deste modo, não é nenhuma novidade a dúvida se o tempo está no mundo, ou no movimento, como examinou Aristóteles, ou ainda se ele está na alma e depende da própria eternidade, como já salientara Santo Agostinho. Já na modernidade, Kant diz que é impossível conhecer o tempo porque é justamente ele algo que possibilita o conhecer ao passo que Husserl pretende demonstrar o tempo pelo método fenomenológico. No entanto, por mais que a dúvida seja antiga, as respostas nunca vieram. Hoje pode-se falar em tempo psicológico, humano, físico e cósmico entre outras noções existentes e, apesar de tais noções serem completamente incompatíveis entre si, não se pode dizê-las inválidas. Neste sentido, ao passo que se pode dissertar sobre o tempo por diversas vias e, mais do que isso, narrá-lo utilizando diferentes concepções, certo é que qualquer tentativa de elucidar o tempo em sua natureza tende a falhar.

E, no entanto, não foi nem a física e nem a filosofia que criaram uma lei do tempo, mas o próprio direito, o qual, na quase totalidade dos Estados Ocidentais, existem disposições legais acerca da organização temporal das leis. No Brasil, a exemplo da legislação italiana, existe uma Lei de Introdução ao Código Civil a qual, na realidade é o Decreto-lei n. 4.657 de 1942. É nela que se encontram prescrições sobre a correta sucessão das leis bem como sobre a correta solução a ser tomada quando a sucessão de leis tem conseqüências drásticas no mundo dos fatos, este último ofício é o que justifica o estudo do direito intertemporal.

 Entretanto é cabível a indagação: pode uma lei dar o tempo? Pode uma lei ser eficiente neste assunto? Diz Jacques Derrida em Dar o Tempo: a falsa moeda, que "se existe algo que não se pode em nenhum caso dar, é o tempo, pois ele não é nada e, em todo caso, não pertence propriamente a ninguém" (DERRIDA, 1991, p. 44). Assim acontece porque, em primeiro lugar, o tempo em sua totalidade é irrepresentável e, em segundo, porque o próprio dar é algo impossível porque se há lembrança, logo há cobrança, o que contraria a gratuidade do dar, e, se há amnese, não mais há qualquer resquício da ação. Portanto, dar o tempo é o impossível.

Mas como então pode o direito dar o tempo? Será então que na confecção desta monografia apenas perdi meu tempo? Vale relembrar que, por mais que a totalidade do tempo não seja assimilável, é possível dissertar sobre ele por diferentes vias. Assim como a filosofia carrega diversas concepções de tempo, o direito não exaure seu objeto no DLICC até mesmo porque o ramo do direito intertemporal traz diferentes teorias que pretendem pacificar a fissura existente entre tempo das normas e ritmo da realidade dos fatos. Cito apenas alguns clássicos: Savigny, Gabba, Hauriou, Vareilles-Sommières, Planiol, Bonnecase, Gény, Duguit, Jèze, Paul Roubier, Chironi, Stolfi, Ferrara e Henri de Page. Todas elas, contudo, por mais que possam conter semelhanças, não são completamente compatíveis, o que é algo sintomático da dificuldade de se trabalhar com o tempo.

Contudo, essas teorias existem com um propósito específico, o qual é a adequação da sucessão das leis aos conflitos de leis no tempo. Assim, elas não estão à toa para o Direito de sorte que ignorá-las não é nada vantajoso à filosofia do direito. Portanto, cabe a pergunta se, por mais que seja impossível domar o tempo, não existe a possibilidade de se narrar mesmo assim. É por este lado que o autor Roberto de Ruggiero abriu caminho ao dizer que, todas as teorias do direito intertemporal têm sua utilidade e não há critério específico para decidir de um modo ou de outro, de forma que o intérprete ganha uma responsabilidade inédita como narrador do direito.

Por esta via, pode-se iniciar um estudo que toma o DLICC não como comumente se encontra na doutrina, ou seja, como uma meta-norma, mas como um signo de tempo, ou seja, um arcabouço de argumentos à disposição do intérprete para que seja feita a melhor adequação possível entre mundo das normas e mundo dos fatos quando há a sucessão de leis.

Por mais que seja a teoria de Ruggiero a concepção que tratou o tempo com a humildade necessária, dois grandes problemas surgem desta concepção: um deles é o problema da decisão do intérprete, ou seja, dar poderes para alguém decidir o tempo e acreditar que ele será, por exemplo, justo em todas as suas decisões.

O segundo problema, decorre da questão: é possível ainda falar em narrativa? Ou ainda: É desejável UMA narrativa predominante?   

Walter Benjamin, testemunha de um século em que cultura e barbárie nunca foram tão explicitamente próximas, entendeu que, com o advento das guerras mundiais, simplesmente foi perdida a capacidade de narrar. No ensaio O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, argumenta que "uma geração que ainda foi à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecia inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano." (BENJAMIN, 1994, p. 198) Sem a capacidade de narrar também foi perdida a capacidade de se intercambiar experiências e, por assim dizer, o homem se encontra numa rotina que justifica a marcha em um tempo vazio e homogêneo.

Diante desta realidade caracterizada por um modernidade líquida, conforme ensina o teórico da pós-modernidade Zygmunt Bauman, qualquer narrativa sólida que se pretendesse dominante acabaria por ser uma aberração se comparada à complexidade da sociedade. No entanto, felizes seríamos se hoje existisse uma grande narrativa que pudesse servir de alvo às ações políticas emancipatórias bem como à filosofia do direito. Mas não: as instituições bem como os discursos que vingam na atualidade somente possuem valor em sua atualidade, o que indica que o efêmero e o descartável são o maior valor, responsável por uma quebra entre o passado e o futuro.


Pietro-Sanguineti_dc.now_tiff.jpg

O quadro (now) de Pietro Sanguinetti, por exemplo, mostra-nos a beleza do agora. Um agora, belo, moderno, computadorizado, exato e espetacular. Entretanto este mesmo agora está entre parênteses, em evidência. Algo evidente é algo comprovado, uma certeza. No entanto, os parênteses isolam o agora, por exemplo, do antes ou do depois. Ao se tentar acabar de vez com a fissura entre linguagem e realidade, ou seja, ao se exagerar na importância do instantâneo, do real, como é recorrente em discursos pseudo-progressistas, acaba-se por isolá-lo criando um agora que não se sustenta porque é instantâneo. Portanto, sem uma ligação entre o passado e o futuro, o agora acaba por se anular em sua própria fluidez.

O quadro de Sanguinetti é testemunho de um tempo baseado na efemeridade do agora, descartabilidade daquilo que foi e dúvida acerca do que será. Este excesso, que fundamenta a fluidez e a própria exceção, no caso do direito, pode ser observado enquanto excesso de normas que, na verdade, caracteriza a exceção como regra no ordenamento. A inflação normativa é um exemplo do que pode acontecer ao se isolar o dever-ser da sociedade com base nas necessidades existentes no agora. Conforme o filósofo belga François Ost,

 

A urgência, temporalidade do excepcional, tende a impor-se como tempo normal - a exceção que anula a regra, de algum modo. Provocando curto-circuito nas formas, nos prazos, e nos processos, a urgência, autorizando-se o estado de necessidade (necessidade que cria a lei), erige-se, assim, em 'salvo conduto generalizado'. Disso resulta um risco de tipo novo, a insegurança jurídica: não insegurança econômico-social (perigo externo), mas risco 'endógeno', produto colateral e indesejável de uma engenharia jurídica cujo ritmo disparou. (OST, 2005b, p. 338-339)

 

Para exemplificar melhor esta questão vale a pena a leitura de um precedente do STF no agravo regimental 3.034 da Paraíba:

 

5. Daí porque, até para ser coerente com o que tenho reiteradamente afirmado neste Plenário, eu haveria de votar no sentido de dar provimento ao agravo. Ocorre, no entanto, que a situação de fato de que nestes autos se cuida consubstancia uma exceção. Com efeito, estamos diante de uma situação singular, exceção, e, como observa CARL SCHMITT, as normas só valem para as situações normais. A normalidade da situação que pressupõem é um elemento básico do seu "valer".

6. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção --- apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção. (BRASIL, 2006) [1]

 

Observa-se com este julgado que nem mesmo a suprema Corte do país, responsável pela guarda da Constituição já realiza julgados de exceção. A busca por dar à cada situação uma justificativa própria, ou seja, dilapidando-se a legislação em busca de uma adequação à emergência da pretensa realidade justifica-se a exceção como regra geral e, desta forma, já não há como se dizer que o DLICC dê tempo algum. No mais, acreditar na humanidade do intérprete demonstra-se uma tarefa arriscada.

Diante de tal situação no direito brasileiro, vale a pergunta se critérios temporais faltam. Como se observou, quando o estado de exceção vira regra, a lei aplica-se desaplicando-se e não há Decreto-lei ou lei alguma que vá poder frear tal situação, principalmente quando a suprema corte já argumenta baseando-se na urgência. Não havendo qualquer resposta a esta questão, ao invés de se tentar dar um tempo, como já muito se tentou fazer no passado, o único consolo consistiria em dar um tempo no sentido mais coloquial da palavra visto que, quando a legislação se esvai nas mãos da política estatal, talvez a política infra-estatal, ou seja, todo o tempo negado pelas excessivas determinações do instante, possa ter alguma esperança. 



[1] Agradeço à professora Jeanine Nicolazzi Phillipi por me fazer conhecer o teor deste acórdão.


* A obra (now) encontrava-se na coleção da (finada) Crysler Motors, quando pude vê-la no MASP.