Eu já havia estado em São Paulo umas cinco vezes. Em nenhuma delas me ocorreu a estupefação que tive agora em minha viagem entre os dias 3 e 4 de Setembro. Como deveria realizar uma prova de doutorado no Largo São Francisco, hospedei-me em um hotel modesto nas proximidades da Praça da República. Sabia da má fama do local, mas como não pretendia sair à noite e o hotel era razoável tanto no conforto como no preço, decidi ficar por lá. Durante o dia, caminhei um pouco pelo centro da grande cidade. Passei pelo viaduto do chá para ir à faculdade de direito e depois nos sebos da Sé e, por fim, nas proximidades do mosteiro de São Bento. Eu já sabia que a Cracolândia estava por lá depois que mexeram na região da Luz, mas não sabia que a coisa era daquele tamanho. Nesta sexta vez, contudo, a cena do centro era tão depressiva que eu não sabia nem mesmo o que pensar. Esses dias assisti na TV algo sobre zumbificação no Haiti, e, olha, as imagens de São Paulo mostram a nudez do ser humano muito melhor. O crack zumbifica mais que veneno de baiacu, com certeza. Durante o dia os montes de mendigo deitados ou delirando nas ruas só não chocavam mais que as muitas crianças que jaziam inconscientes entre papelões molhados pela garoa nojenta. À noite arrisquei-me a olhar pela pequena fresta de janela que tive. Contei uns dez acendendo a pedra. E durante toda a noite era gritaria e polícia, etc. Realmente só consigo aqui dar uma breve descrição do que passei, mas é difícil saber o que pensar daquilo tudo. As pessoas passando quase por cima de outras e desviando todo o olhar para aqueles pedaços de carne fedendo a cachorro molhado. Sem palavras. Também ouvi que a prefeitura teria reduzido em São Paulo as verbas para a coleta de lixo, o que deve ter gerado toda a imundice. Isso também deve ter contribuído para a minha angústia, que também não crê em soluções higienistas. O mais curioso é que durante o dia os camelôs eram os únicos que animavam um pouco o centro de São Paulo, visto que os outros passavam com muita pressa para ver os dependentes de, que demonstravam um torpor muito grande para chegar a pensar em si mesmos. Acho que essa cena combinava completamente com a arquitetura fascista do Anhangabaú, com o gótico escuro em úmido de Santa Ifigênia ou Sé e com as grandes janelas de prédios art déco das proximidades. Gothan City, só que real demais. Aquelas cenas do ensaio sobre a cegueira, sem nenhuma grandiosidade ou lição de moral. Era só muita tristeza junta. E dizer que o crack é uma maneira daquela gente sair momentaneamente daquela atmosfera é o que mais chama a atenção. Enfim, não culpemos apenas o crack para toda aquela tristeza naquela cidade horrorosa e opressora. Olha, eu não quero vir aqui com discurso de Sul Maravilha, ou dizer que a minha cidade (Florianópolis) não tem crack ou problemas sociais, mas uma tristeza daquela, tanto pela lixarada, quanto pela mendicância, pressa ou chuva eu nunca presenciei. Detalhe que não vi Heliópolis. Se o leitor se decepcionou em ler até aqui o que ele mais ou menos vê na TV, o que eu posso dizer é que, até alguns meses atrás, São Paulo não estava assim. Mas não se pode pensar que algum dia não foi. A indigência sempre houve no Brasil e a miséria tem a função de conformar as ditas classes D e E sobre a sua condição, louvando a Deus por não estar naquele estado de zumbificação. Mas hoje essa vida nua está exposta descaradamente no centro da maior cidade do país. Tão manifesta quanto o velamento frouxo de tudo isso.
Caro Léo,
Não tenho andado muito pela cracolândia. Tenho andado por outros horizontes, certamente mais higiênicos, mas dificilmente menos "zumbificantes". Ônibus: Center Norte. É o ônibus que te tira de São Paulo (ao menos, àqueles que, como eu, costumam andar de ônibus). Esse ônibus tem o nome de um Shopping, que fica perto da Rodoviária do Tietê. Isso já parece me dizer muita coisa. Saio da "civilização", da Faria Lima, daqueles prédios bonitos, das ruas em que andam pessoas tão apressadas e bem-arrumadas que, por vezes, me fazem sentir um mendigo vadio perambulando em uma cidade que não é minha (porque há partes de São Paulo que são mais européias que Curitiba - não à toa, há o Jardim Europa, que tem um metro quadrado a peso de ouro). Mas o percurso do Center Norte é outro: vai pela 9 de julho. É a avenida que tem a FGV, onde se paga (sei eu!), uns três ou quatro mil reais por mês para aprender o "pensamento para o mercado". Ouço alguns comentários óbvios: "Lá é muito bom! Quem faz, $ai com o emprego garantido em uma grande empre$a". Mas o que mais me fascina naquela cidade não são as diferenças aparentes, mas os limiares de indiferença que dão sentido a elas: por isso esse tema aparentemente estúpido - o percurso do ônibus pela 9 de julho. Você sai do Itaim Bibi e vai passando por túneis, zonas de sombra, trânsito fluindo (às vezes não, depende da chuva); e aos poucos vai chegando ao "centro velho". Dos prédios europeus, americanos, com belos móveis nas sacadas (como se alguém ali tivesse tempo para tomar um café olhando aquele céu imensamente cinza, mas lindíssimo, de São Paulo)e aos poucos vai entrando em um universo que é como que a co-extensão daquele, mas invertido: prédios horríveis, antigos, caindo aos pedaços; pessoas andando sem sentido, pedindo dinheiro, correndo para o trabalho, consumindo em lojas baratas. E o ônibus vai rasgando todo esse limiar que divide, mas também faz permanecer em estranha solidariedade, uma coisa e outra. E só conseguimos ver os extremos, mas fico pensando: "a partir de onde começa uma coisa e termina a outra?". Cada vez que visito São Paulo, tenho menos respostas sobre essa tópica - até porque a cidade também se mexe, os viciados vão de um lado para outro, perambulam, incomodam, estão sempre tentando parar na penúltima dose (que é para poder continuar depois). O fato é que os habitantes da cracolândia andam sempre no limiar entre a penúltima e a última dose (depois da qual não vai haver uma outra, porque sequer se consegue respirar). Mas nos belos Shoppings do Itaim, ou da Cidade Jardim, também vemos zumbis. Igualmente apressados em seu desejo de morrer. Não pela droga, mas de outras formas. Talvez idosos, provavelmente tranquilos - agarrados na mão de Deus, pedindo perdão. Também estão sempre em busca da penúltima liquidação - porque a última, é quando já não se pode mais comprar... E assim ficamos, todos nós, sempre nos limiares. Ontem ouvia Zizek (a cuja leitura de Deleuze tenho inúmeras reservas) falar da proletarização em sentido hegeliano, quer dizer, do homem do qual todo conteúdo foi retirado (e é pura forma vazia). Fico pensando até que ponto essas vidas nuas (e esses "muçulmanos", para usar o jargão do Láger, mais bem-vestidos e nutridos que outros) não são uma pura forma de vida, uma forma de vida separada daquilo que uma vida... (une vie..., de Deleuze) pode. Não é isso o Zumbi? O Morto-vivo? O sobrevivente vampirizado pelo capital? No fundo, creio que seja exatamente isso: "eu" = "desejo de morrer". Um abraço, meu amigo! Murilo.