Como pode um cidadão, ou melhor, um cidadão ao quadrado, já que representante de outros cidadãos, entrar na mais alta Corte de Justiça do seu país, cometer um crime que a Constituição onsidera tão grave a ponto de enumerá-lo explicitamente como uma violação aos Direitos e Garantias Individuais, recobrindo-o com o manto excepcional da imprescritibilidade e inafiancabilidade, e sair impune? Foi o que aconteceu semana passada, no Supremo Tribunal Federal. É assustador saber que nenhum dos 11 magistrados de "reputação ilibada" e "notável saber jurídico" - muitos deles nomeados por Lula - deu voz de prisão ao racista. As causas desse lapso de dever cívico dos ministros do STF são profundas. Dizem respeito à própria estrutura do Direito. Se o senador tivesse usado o vocabulário do seu mentor, que os jornalistas adoram caracterizar como uma "raposa" da política, um grande "estrategista", aquele mesmo que transformou seu partido em um satélite do PSDB, e tivesse dito que "melhor do que as cotas raciais, é acabar com essa raça de uma vez", ou, ao invés de dizer que as "negras" (escravas) mantinham "relações consensuais" com os brancos (seus patrões), tivesse dito que "as pretas, putas como eram, gostavam mesmo é de dar, e mesmo de apanhar", provavelmente o resultado seria outro. No plano do conteúdo, aparentemente, pouco importa a maneira em que o ilustre senador enunciou o que enunciou: dizer que a relação que um sujeito tem com algo que é, para ele, um objeto, uma coisa - é isso que um escravo é, uma mercadoria, um "bem móvel" - é consensual, quando um dos lados não pode consentir é um absurdo. Todavia, no plano do Direito, essa diferença é tudo. Todo mundo sabe que a KKK é, foi, sempre foi, será, sempre será e sempre continuará sendo uma organização racista. Porém, agora que não advogam mais publicamente que os negros devem ser queimados, mas que os brancos são discriminados (sic), eles podem fazer comícios por aí. O problema reside na dimensão formal do Direito. E esse problema o acompanha desde o seu nascimento: ao contrário do que muitos acham, o termo latino "ius" não remete à Justiça (a própria formação do termo "iustitia" é tardia), mas a jurar, "iurare".Direito é juramento, é repetição de fórmulas, ou melhor, a enunciação da fórmula correta. Para que algo se inscreva na esfera do Direito, ele precisa se formalizar, se tornar fórmula. Não se trata aqui apenas de inscrição na legislação, em uma lei elaborada pelo Poder Legislativo. O Direito pode existir - e continuar calcado no formalismo - mesmo ali onde não há lei em sentido estrito, o que é provado pelo Direito costumeiro. A formalização é um processo maior do que a lei, e engloba toda a máquina judiciária, o que inclui juízes, decisões judiciais, advogados, juristas, a chamada "doutrina", chegando até a sociedade. Trata-se da fixação de conteúdos permitidos ou proibidos em fórmulas. Esse é o paradoxo do que se costuma chamar, em geral pejorativamente, de "politicamente correto": ao mesmo tempo que produz avanços materiais inegáveis, está limitado à própria formalidade. Ou seja, as fórmulas - aquilo que (não) se pode fazer ou dizer - repercute sobre o mundo, modifica o mundo, mas elas não perdem a sua dimensão de fórmulas (a não ser que se seja um marxista muito enviesado e se acredite que a expansão do Direito levará à sua abolição dialética). Aqueles que defendem o Direito como um mecanismo de transformação social (ou mesmo só como uma ferramenta progressista), mais cedo ou mais tarde esbarram nesse paradoxo: o Direito só garante aquilo que está consubstanciado em fórmulas (e são justamente fórmulas que, por vezes, impedem a transformação social). A partir do momento que se defende o reconhecimento jurídico de certos direitos que o Direito não reconhece, se está defendendo a formalização desses direitos. De fato, a oposição entre direito material e direito formal é inócua: na medida em que a formalização dos direitos é um processo histórico, todo direito formal já foi apenas um direito material, e pode voltar a sê-lo. Ninguém é condenado por emitir discursos de conteúdos racistas (matéria) - só existe o crime de racismo quando este é enunciado de uma certa forma, por uma certa fórmula. Que o ilustre senador possa deixar o STF impune é prova clara disso.
A dimensão formal do Direito
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10 Comentários
Alexandre Nodari
é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do SOPRO.
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bom, muito bom. me deu uma ideia para escrever a próxima coluna. abraço.
Demétrio Magnole publicou artigo hoje na Folha que pode servir de contra-ponto ao debate - http://www.cella.com.br/blog/?p=14672
Alexandre,
o texto está excelente. Eu tenho apenas uma dúvida, um ministro do STF poderia, efetivamente, dar voz de prisão a Demóstenes Torres? Pergunto porque ele participava da audiência pública no STF na condição de senador e os congressistas, de acordo com a Constituição Federal, "são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos". O correto seria que Demóstenes fosse detido em flagrante delito, mas isso seria realmente possível? De todo modo, se não fosse possível, apenas retorna-se à questão que você abordou, a preponderância da forma sobre o conteúdo: independentemente daquilo que Demóstenes falasse, mesmo se ele dissesse que "as pretas, putas como eram, gostavam mesmo é de dar, e mesmo de apanhar", ele sairia do STF tão livre com entrara, porque, ao fim, o que importaria não seria o que ele tinha falado, mas a forma como tinha falado, ou seja, na forma de senador da República, condição que lhe assegura imunidade material.
Abraços!
Fabiano: com certeza, o senador fala e age de uma forma diferente, ou melhor, é revestido por uma forma. Mas neste caso, poderia ser dada voz de prisão, já que o parágrafo segundo do art. 53 (o mesmo que prevê a imunidade parlamentar) da CF diz que "Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável", que seria o caso: a própria Constituição Federal dispõe, no artigo 5, inciso XLII, que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei" (e estando este dispositivo incluído na seção de Direitos e Garantias Fundamentais, é protegido pela cláusula pétrea - art 60, parágrafo 4, inciso IV -, o que, de certa maneira, já que não pode ser alterado nem pelo poder constituinte derivado, o faz prevalecer sobre a imunidade parlamentar). Mas, enfim, isso é o de menos. Um abraço
Olá Nodari,
Muito bom seu artigo. Me fez pensar de como alguém poderia dizer que o fato de alguns militares da ditadura terem até se casado com mulheres que eles prendiam ou torturavam mostra como tem muito de exagero nesta história de tortura e estupros de militantes políticas, já que muitas das relações dentro das prisões entre policiais e presas políticas foram consensuais... Ou então podemos ir até ao artigo do link acima, para deixarmos o senador de lado, para dizer que os Nazistas não poderiam ter matado tantos judeus sem a mais que provada ajuda dos próprios líderes judias que forneciam o endereço, os nomes, os locais de trabalhos... E agora minha pergunta: em que isto torna os nazistas menos responsáveis pela Shoa? Dizer que os africanos colaboraram para o tráfico de escravos não diminui a responsabilidade dos colonizadores, esta participação dos africanos apenas deixa mais claro ainda como a máquina colonial era cruel... Daí que volto ao Primo Levi que vai dizer que o mais cruel foi levar os próprios judeus a operarem as câmaras de gás... Ou os negros a serem capitães do mato... Ou as mulheres negras a serem obrigadas na hora do sexo a fazer um estupro parecer uma relação “consensual” para os senhores brancos....
De qualquer maneira, eu não entendo por que esse pessoal gosta tanto de levantar a conivência dos negros com a escravidão para criticar as costas... (primeiro por que cotas têm menos a ver com a escravidão, do que com o simples fato de que os negros em 2010 não acessam a universidade brasileira e nada leva a crer que irão acessar sem as cotas, e portanto, isto é ruim para eles, para universidade – que fica menos diversa e mais burra – e para sociedade brasileira que continua segregada, neste apartheid que poucos querem reconhecer, pois a universidade é, apesar de tudo, um espaço para a conversa, integração e eu até diria para começar relações sexuais consentidas por ambas as partes entre brancos e negros. Por que não? Ou então, é continuar com a velha história das relações consensuais entre brancos e negros acontecerem entre o patrão, ou o seu filho e a empregada doméstica, ou a ligação quase imediata entre a mulher negra e prostituição ou relatos piores.... Quero dizer, depois de ler seu artigo, agora entendo por que eles voltam sempre neste assunto... é como eles podem manifestar o racismo que carregam por uma forma que não causa reação do direito e por isto não é crime (como bem você mostrou no eu artigo).
Um abraço
Rodrigo
Insulto a memória, a honra, história e luta das mulheres negras.Mulheres negras foram escravizadas, açoitadas, estupradas, violentadas, mutiladas, torturadas, o discurso foi violento como milhões de chicotadas desferidas no pelourinho.A dignidade e a honra das mulheres negras foi aviltada.O chicote está na mentalidade de quem tinha o dever de fundamentar juridicamente sua contrariedade à politica de cotas, escreveu uma página vergonhosa na história do Brasil, quando equivocou-se ao justificar a violação de direitos humanos contra as mulheres negras desde 1540 até os dias de hoje, tal violação estão em estatísticas de órgãos como IPEA, IBGE, BANCO MUNDIAL, UNICEF e outros.
Alexandre,
O jus não vem do jurare, as palavras apenas dividem o mesmo radical - o primeiro tinha uma conotação mística na Roma monárquica, de um espécie de ordem que altera o estado das coisas ("eu vos declaro marido e mulher" é um bom exemplo disso), o que é mantido mesmo depois quando o debate público torna-se o processo mediante o qual o jus é produzido; o jurare, portanto, seria uma declaração que alteraria o próprio estado do declarante, obrigando-o a algo - positiva ou negativamente.
Esse era o modo romano de expressar esse fenômeno, os helênicos contemporâneos não tinham uma palavra para definir as normas estabelecidas no período pré-debate público, portanto, o díkaion (o direito, o justo, o devido), só surge a partir daí - e seu conteúdo semântico colaborou para a construção do significado da palavra "direito" - porque influenciou não a forma, mas o significado do próprio jus, haja vista que as leis das doze tábuas foram inspiradas nas leis de Sólon.
O fato é que a sua postagem traz dois pontos essenciais: O primeiro - e principal - sobre a forma como direito se consubstancia - eu, pessoalmente, discordo, creio que o direito (e isso é um debate filosófico longo) pode ser expresso de uma maneira formal, mas não necessariamente ele precisa ser feito assim (a menos que tomemos algumas ocorrências do fenômeno jurídico no tempo e no espaço como "o direito").
Creio que devido a isso, o Direito garanta algo para além do que existe nas fórmulas pelas quais ele pode ser expresso, se é a autoridade que cria o direito - ao meu pensar, ela é um elemento que pode expressar um determinado padrão jurídico -, é verdade quem sustenta a fundamentação - e consequente sobrevivência - de um certo padrão jurídico. Por exemplo, um sistema que garanta a prática de racismo, caso não garanta a não ocorrência disso de modo efetivo, estará fadado a ele mesmo perder a legitimidade.
No caso em questão, temos a questão da inviolabilidade parlamentar e a do flagrante de delito, para tanto interpretar e chegarmos a solução correta - ou mais eficaz -, a questão da forma acaba sendo fundamental porque ela é o que distingue um discurso científico ou político - que pode ser ruim e repulsivo - de uma ofensa em sentido puro; também há outro aspecto, que é do próprio próprio problema lógico do Direito Penal, que mais do que qualquer outro ramo jurídico, enquadra as situações por fórmulas rígidas - e sim, eu penso que o direito burguês europeu continental é necessariamente estruturado por fórmulas rigídas.
Vou polemizar mais ainda, levando em consideração esse padrão jurídico que nós adotamos (que é formal sim), eu não creio que isso seria passível de prisão, mesmo que ele não fosse parlamentar - sim, ele levantou uma tese absurda e falaciosa que, portanto, deve ser desconstruída à luz da razão, mas que pelo próprio princípio da liberdade de expressão, ele não poderia ser preso por isso, o racismo seria mesmo uma ofensa direta.
Não está de um todo errado, o problema é maior e anterior - afinal, assim o espaço para expressas e desconstruir verdades absolutas (o que fazemos o tempo inteiro) poderia estar reduzido e o expressar algo (defender a pena de morte com argumentos científicos, mesmo falaciosos) se confundiria com o fazer algo criminoso (incitar o linchamento de alguém).
Eu, naturalmente, não acredito nesse modelo jurídico. Não pela distinção que ele faz e eu expus nesse parágrafo, mas por outros tanto motivos. Em primeiro lugar, porque ele é consequencial e não causal, isto é, as normas constituídas pouco miram nas causas dos problemas, mas sim nas consequências deles - daí a própria lógica prisional -, uma consequência óbvia do Capitalismo que precisa reserva essa zona cinzenta para os agentes de mercado, enquanto agentes político, determinarem os comportamentos e assim manterem o sistema de pé. Normas que miram causas de problemas são, destarte, raras, ainda que existam - e a aprovação das cotas étnicas e sociais acompanhadas de um plano de desenvolvimento e expansão da Escola e da Universidade Pública são os caminhos para tanto, não a prisão de quem quer que seja.
Hugo: vou deixar a discussão etimológica em suspenso, porque pretendo escrever em breve um post sobre o "ius" e o "fas", no qual tentarei sustentar melhor meu ponto de vista. Quanto à questão da materialidade (ou da dimensão não-formal) do Direito, é algo que nunca consegui entender, talvez porque eu não tenha capacidade de abstração suficiente. Não consigo vislumbrar um exemplo de Direito sem relação com a forma. O dia que me provarem de sua existência, eu faço o exame da OAB e viro advogado, porque geralmente os seus defensores acabam se referindo a coisas muito vagas, como "aspirações sociais" (que, além do mais, sempre buscam se formalizar para se efetivarem, afinal, são "aspirações", aspiram a). Eu acredito que o Direito é só e somente só uma certa modalidade da linguagem, ou melhor, uma certa forma de relacionamento entre as palavras e as coisas. Veja bem, não estou negando que ele tenha interação com a sociedade, afinal ele não é alheio à história; o que estou dizendo é que ele se define pela formalização. Acho contraprodutivo agregarmos outros fenômenos sociais à definição do Direito para tentarmos mitigar o seu autoritarismo, como se, definido teoricamente de outra maneira, ele deixasse de ser o que é.
Alexandre
Prosseguindo a conversa, como eu eu te adientei pela nossa conversa de ontem, eu vejo que um determinado padrão jurídico precisa ser expresso por uma determinada forma, mas ele não se define por isso, sua materialidade - eu preferiria substancialidade -reside na questão da necessidade da realização da política - que em si padece da questão de que não é autorealizável, seja qual for o sistema. Com isso, eu não estou agregando outros fenômenos sociais à definição de Direito, mas sim ponderando que ele está conectado a uma série de outros fenômenos dos quais ele deve ser distinguido, mas não alheiado quando o analisamos. O direito burguês é, por tabela, um direito formalista, ele precisa ser visto como um mero sistema de fórmulas normativas alheio à política porque a compreensão do seu significado implicaria no questionamento da natureza das relações de poder que o forjaram e o sustentam - assim o era na Heláde pré-política ou na Roma monárquica, onde o sagrado era justificativa da norma, o que cai por terra com o fenômeno da política, ou melhor, com o fenômeno da consciência política - ainda que por definição esse consciência que se expressava como uma consciência do conjunto do qual se fazia parte apenas tivesse sido trazido ao lume das respectivas classes dominantes, mais tarde, Gramsci falará numa certa "socialização da política" (a conquista do socialismo pela socialização da compreensão do conjunto em que se vive, o que para os marxistas revolucionários levaria a extinção do direito porque tomavam uma forma de expressão do direito como o direito, afirmando a concepção burguesa pela negação). Enfim, é uma questão muito complexa, mas a minha hipótese não é uma interpretação progressista do direito, mas uma visão que parte da ideia do direito enquanto um instrumento necessário para as comunidades humanas realizarem seus fins - não necessariamente o "progresso" -, capaz, inclusive, de se autodestruir.
Muito obrigado pelo esclarecimento, Alexandre.
Um abraço!