
Nas eleições municipais desse ano, três municípios - Fátima do Sul (MS), São João Batista (SC) e Colorado d'Oeste (RO) - testarão as chamadas urnas biométricas, capazes de identificar o eleitor pelas impressões digitais. A justificativa para a implementação desse tipo de urna é, além de 24 bilhões de dólares economizados em 10 anos na impressão de títulos eleitorais (sic), o mesmo de sempre: tornar o processo mais seguro, evitar fraudes, que fulano vote em nome de sicrano, etc. Qualquer um que tenha um pouco de memória há de lembrar que Brizola, provavelmente o último realista da política brasileira e ele mesmo vítima de uma terrível fraude eleitoral com a participação das Organizações Globo, morreu sem conseguir aprovar o modelo de urna eletrônica que imprimia os votos (um sistema bem simples: após votar em seus candidatos, a urna imprimia instanteneamente o voto, visível ao eleitor, que, então apertava pela última vez o "Confirma", fazendo com que a máquina depositasse o voto impresso em uma urna de verdade), possibilitando o conferimento por amostragem entre os dados eletrônicos e os impressos, ou mesmo, uma contagem manual em causa de pane ou de patente irregularidade. Ou seja, a urna biométrica não tem que ser analisada somente pelos critérios do processo eleitoral, mas dentro do panorama mais amplo da biometria como um todo (e isto não inclui somente a
tatuagem biopolítica exigida na entrada dos EUA ou os imensos bancos de DNA, mas igualmente o leitor de digitais do cartório ou plano de saúde local). Os mecanismos de identificação individual sempre tiveram uma íntima ligação com as esferas do poder, onde mais do que o cerceamento do direito de ir e vir, estava em jogo o
controle deste direito - nesse sentido, vale a leitura de
The Invention of the Passport, onde John Torpey demonstra, entre outras coisas, como o cadastro e controle de passaportes foi essencial à centralização e burocratização (leia-se, modernização) do poder na França Revolucionária. O que está em jogo na biometria, todavia, vai além. As impressões digitais neste sentido, são paradigmáticas: como sabemos, elas são marcas formadas na vida uterina, constituem, portanto, um dado da nossa história natural, que a biometria converte em dado. Ou seja, a identificação de qualquer um pelas digitais ao mesmo tempo o animaliza e o objetifica. Os dois últimos séculos estão repletos de exemplos de "aplicação prática" de dados biométricos - basta lembrar a criminologia racista de Lombroso, que pretendia identificar criminosos por traços físicos (e que algumas pessoas que se acham "progressistas" ou "críticas" tentem identificar recalques identitários em outras, comparando-a a biotipos não é por acaso), ou a tatuagem identificatória dos internos de Auschwitz. O futuro, todavia, parece ser ainda mais assustador. A informatização e interligação dos bancos de dados permitirão cenários prenunciados pela ficção científica e popularizados pelos filmes hollywoodianos (o indivíduo reduzido a uma "soma de informações", nas palavras de Susan Willis, acessíveis pela identificação de uma marca biológica): leitores de retina por toda parte nos identificarão e, imediatamente, darão acesso ao nosso crédito bancário, ao nosso DNA, ao nosso histórico médico, ao nosso histórico de viagens, etc etc etc. As liberdades individuais (os direitos civis) não terão que ser abolidas, elas não terão a mínima utilidade.
Em 17 de novembro de 2005, estudantes vestidos de palhaço quebraram os portões biométricos do refeitório da sua escola. Giorgio Agamben escreveu, em defesa deles, o belíssimo Não à biometria (o link é para a tradução ao inglês).Quem se interessa pelo assunto, deve ler também o Documenting Individual Identity: The Devolpment of State Practices in the Modern World
, obra coletiva organizada pelo mencionado John Torpey e por Jane Caplan.
Muito interessante reflexão, Alexandre