Por que vou votar em Marina Silva

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Quando Lula venceu as eleições de 2002, parecia que, passados longo quarenta anos de tecnocracia militar e civil, a imaginação chegava ao poder. As forças vivas da sociedade  ameaçavam tornar-se de fato vivas, e, apesar da Carta ao Povo Brasileiro (de certo modo uma capitulação), a esperança de pensar o país vencia o medo de fazê-lo, o conforto de seguir a cartilha neoliberal. Era a própria política, as próprias instituições que estavam a ponto de saírem da inércia em que os militares a haviam adormecido. Uma verdadeira revolução democrática se desenhava. A turma de Plínio apresentava um audacioso programa de reforma agrária; o esporte, até então tratado pela lógica do espetáculo, iria se converter em ferramenta de inclusão social, por intermédio de um plano bolado por gente da estirpe de Juca Kfouri; Marina Silva, no Fórum Social Mundial de 2003, falava na transversalidade da política ambiental, em que a preocupação pela sustentabilidade não ficaria restrita a um ministério, mas faria parte do planejamento econômico e social; criava-se o chamado Conselhão, composto de representantes de toda a sociedade (empresários, sindicalistas, gente das Igrejas, dos órgãos de classe, dos movimentos sociais), que pensaria o novo "pacto social" e daria as bases para as reformas política e tributária; a necessidade de acabar com a perversa mazela da fome se cristalizava na adesão total da sociedade ao Fome Zero. À mera gestão da ordem, a eleição de Lula, e do PT, contrapunha o retorno da política.

Por uma série de motivos, esse movimento de pensar o país, de refundar as instituições, de realinhar historicamente o Brasil foi arrefecendo. No primeiro ano de mandato, o governo optou (ou necessitou) por não aproveitar a "Onda Lula" e fazer as reformas que dariam as bases para essas transformações, preferindo (ou tendo que) evitar a crise econômica gestada pelo neoliberalismo tucano. Pouco a pouco, as mudanças de base institucionais foram dando lugar à conciliações em que se perdia mais do que se ganhava  - o Conselhão foi perdendo sua força, a reforma agrária não pautou a política agrícola, bem como a preocupação ambiental voltou a ser um mero entrave ao desenvolvimento econômico (os dois maiores erros do governo, a meu ver), os mesmos "comunistas" que lideraram a CPI contra a CBF, alçados ao poder tornaram-se aliados dela. O fim simbólico desse momento transformador foi o chamado mensalão. A partir dele, Lula se descolou do PT, e o governo adotou a postura desenvolvimentista que Dilma encarna tão bem. Nesse movimento, o PT deixou de ser o partido que aglutinava simbolicamente os setores que pensavam o país para se tornar a brigada da transformação econômica e social promovida por Lula. Essa mudança, porém, trouxe inúmeros benefícios, como o fortalecimento do consumo interno, uma ascensão social nunca antes vista nesse país (com a política de valorização do salário mínimo, com a conversão do Fome Zero em Bolsa Família, etc.), com o reaparalhamento das universidades federais, com a política externa ativa adotada, etc. Todos esses seriam motivos suficientes pra votar em Dilma. Todavia, eu quero mais.

Os ganhos inegáveis do governo Lula, talvez o melhor da história do país na questão social e um dos melhores da questão econômica, provavelmente possibilitaram a base objetiva para a transformação política e institucional que o país tanto precisa. É provável que só agora - e não em 2002 - se possa, de fato, colocar a imaginação no poder, e pensar os rumos que queremos dar, para evitar que a diversidade social e ambiental se converta em homogenia. Acredito, com Viveiros de Castro, que Marina Silva simbolize essa diversidade e a necessidade de pensá-la estrategicamente como pólo norteador de nossa política. Confesso que quando no começo da campanha Marina decidiu pautar a sua plataforma na educação, e não na necessidade de rever o modelo produtivo e de consumo, ainda devastatórios e concentracionários, fiquei decepcionado. Aos poucos, porém, vi que o discurso de Marina sobre a educação encarnava a aliança entre o sonho e a possibilidade de que fala Viveiros de Castro: investir 7% do PIB em educação, fomentar pesadamente (e não só com meia dúzia de editais do CNPq) pesquisas ligadas à tecnologia verde, apoiar de verdade iniciativas de conversão da nossa matriz energética, tudo isso aponta para uma mudança estratégica do papel do nosso país. A partir de investimentos estratégicos em educação é possível ao mesmo tempo colocar o pensamento na agenda política e mudar os rumos sócio-econômicos de nosso "desenvolvimento".

Considero que Lula mudou os parâmetros da gestão econômica e social a que o governo foi reduzido na segunda metade do século XX. Todavia, acredito que é preciso mais do que apenas gerir o Brasil, é preciso repensar as bases da gestão, é preciso uma mudança política, de olhar. Precisamos passar da economia (a administração da casa) à ecologia (o pensar sobre a casa) e é isso que o socioambientalismo encampado por Marina Silva, herdeira de Chico Mendes, põe na ordem do dia: não se trata apenas de preservar as "reservas ecólogicas", mas de pensar "o próprio problema da possibilidade material de existência do mundo". O modelo capitalista não provoca apenas uma cisão entre proprietários e proletários; na sua base está uma concepção progressista mais difundida na inesgotabilidade das condições materiais de existência da Terra (concepção partilhada pelo socialismo real e pelo desenvolvimentismo nacionalista). O tempo urge. É preciso unir a crítica ao capitalismo à crítica ao progresso infinito.

Guy Debord, em O planeta doente, argumentava que o problema ambiental, já grave em 1972, fazia com que o lema "A revolução ou a morte" deixasse de ser "a expressão lírica da consciência revoltada", para se tornar a única verdade política: "Nesta sociedade em que o suicídio progride como se sabe, os especialistas tiveram que reconhecer, com um certo despeito, que ele caíra a quase nada em maio de 1968. Essa primavera obteve assim, sem precisamente subi-lo em assalto, um bom céu, porque alguns carros queimaram e porque a todos os outros faltou combustível para poluir. Quando chove, quando há nuvens sobre Paris, não esqueçam nunca que isso é responsabilidade do governo. A produção industrial alienada faz chover. A revolução faz o bom tempo." É evidente que Marina Silva está longe da revolução de que falava Debord. Mas é provável que esteja mais próxima dela do que os outros candidatos. Ao menos, porém, nos faz pensar na sua necessidade. Verde por fora, vermelho por dentro, ou vermelho por fora e verde por dentro - tanto faz, o que importa é a indissociabilidade de ambos, o fato de que um não pode existir sem o outro. Essa é a mensagem de Marina Silva, e é por isso que, depois de votar por 10 anos no PT, votarei nela, ainda mais esperançoso do que votei em Lula em 2002.

4 Comentários

De uma lucidez abissal, Nodari. Somando este seu texto com "O Regresso", do Luís Werneck Viana, temos o mapa deste pleito. Parabéns pela opção. Estou com você.


Caro Alexandre, parabéns pelo texto, estou completamente alinhado com suas ideias. abraço, paulo.


De uma lucidez abissal, Nodari. Juntando este seu texto com "O Regresso", do Luís Werneck Viana, temos o mapa político deste pleito e do seu significado. Parabéns. Estou com você.


Parabéns pelo texto. Minha opção nessas eleições é a mesma e pelos mesmos motivos. O Brasil merece mais do que essa visão medíocre de país!


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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

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